Dra. Roberta Mendonça De Carvalho, professora de Estudos Urbanos na University of Pittsburgh, EUA e Pesquisadora Associada do LEGAL
A transformação da Amazônia brasileira é um fenômeno marcante e recente, que vai além da mera perda de cobertura florestal. A urbanização na região tem se acelerado significativamente nas últimas décadas, com mais de 70% da população atualmente vivendo em áreas urbanas. A criação de mais de 400 municípios nos últimos 50 anos é um indicativo claro dessa tendência. A urbanização é um dos principais motores da reconfiguração espacial e geopolítica da Amazônia.
As mudanças rápidas na Amazônia são impulsionadas por múltiplos fatores (Costa & Pires, 2015; Parry et al., 2018; Sawyer, 2015a; Trindade Júnior & Barbosa, 2017), sendo a urbanização uma de suas principais consequências. Assim, a rede urbana em desenvolvimento na Amazônia constitui uma dinâmica-chave responsável pela reconfiguração espacial recente da bacia (Becker, 2005). Seja considerando as “Cidades da Floresta” ou as “Cidades na Floresta” (Browder & Godfrey, 1997; Garcia et al., 2007; Trindade Júnior, 2013), a reconfiguração urbana da Amazônia ainda é uma realidade frequentemente ignorada na literatura especializada. A Amazônia não é apenas uma floresta, mas também uma complexa rede de cidades e centros urbanos interligados, cujo estudo é essencial para uma compreensão abrangente da região.
Desde a década de 1950, estados e municípios Amazônicos viram suas populações aumentar, com outliers de até 500% (da Trindade Jr, 2005; IBGE, 1970, 2012), enquanto a população do Brasil cresceu cerca de 254% (Sawyer, 2015b) . Apesar do alto nível de urbanização, algumas áreas dentro da região permanecem predominantemente rurais, contribuindo para sua heterogeneidade em termos de assentamento humano e processos espaciais.
A nova configuração da Amazônia desafia paradigmas tradicionais e levanta questões sobre o quão “urbana” a floresta se tornou. Geralmente, a expansão urbana ocorre paralelamente à diminuição da floresta. Normalmente, o crescimento urbano está associado à redução da floresta, mas é crucial entender como e onde esses processos ocorrem e quais forças os impulsionam.
Urbanização e Divisão Municipal
De acordo com o censo brasileiro de 1960, a população total da Região Norte era de aproximadamente 2,9 milhões, dos quais 35% eram urbanos, em comparação com a taxa de urbanização nacional de 44%. No censo de 1970, a região Norte cresceu em 1,3 milhão, atingindo 4,2 milhões de habitantes, e a população urbana aumentou para 43%, em comparação com a taxa de urbanização nacional de 55% (da Trindade Jr, 2005; IBGE, 1970, 2012). Apesar do conceito de Amazonia Legal ter sido criado em 1953, dados populacionais referentes à essa divisão sociopolítica ainda apresenta limitações na oferta de dados populacionais, razão pela qual, muitas vezes, se utiliza a região NORTE como referência.
A urbanização é um processo histórico com muitos impulsionadores. A reconfiguração social e física do espaço é impulsionada pelo aumento acelerado da população e resulta da concentração cumulativa de pessoas em certas áreas. As aglomerações levam à concentração de atividades econômicas e serviços que caracterizam as áreas urbanas.
No Brasil, um elemento administrativo central do processo de urbanização que reflete e reforça a reorganização da população no espaço é a criação de novos municípios. A criação de novos municípios na Amazônia aumentou desde 1950, com um pico na década de 1980. Um município, por definição, possui um centro urbano, a sede administrativa. Se novos centros urbanos surgirem, as populações locais podem solicitar ao governo federal o reconhecimento da área como um novo município. Foi assim que o surgimento de novos centros urbanos levou à criação de novos municípios na Amazônia Legal Brasileira. Desde 1950, quase 500 novos municípios foram reconhecidos na Amazônia. Somente na década de 1980, 143 novos municípios foram criados. O processo de urbanização continuou na década de 1990, com o reconhecimento de mais 243 municípios. A reconfiguração regional se estabilizou na década de 2000, quando apenas três novos municípios foram criados na primeira década do milênio. No geral, nas três décadas que abrangem 1980-2010, o número total de municípios aumentou de 338 para 807 (Figura 1; Figura 2).
Figura 1 – Total de Municípios na Amazônia por Década.
Fonte: Banco de dados da autora e IBGE.
Figura 2 – Novos Municípios na Amazônia por Década
Fonte: Banco de dados da autora e IBGE.
A urbanização recente na Amazônia é frequentemente enquadrada em termos de modelos de cidades em crescimento (Brenner et al., 1970; Dufour & Piperata, 2004; Isserman et al., 2016; Miranda Rocha, 2011). As novas cidades nascem em áreas com possibilidades econômicas, fomentando o rápido surgimento de novas populações urbanas. As possibilidades econômicas de explorar recursos naturais atraem concentração de população para áreas menos ocupadas ou dantes desocupadas, refletindo uma urbanização espontânea ao invés do crescimento urbano planejado. Essa urbanização intensa e frequentemente não planejada gera desequilíbrios ambientais e socioeconômicos. A prosperidade econômica a curto prazo atrai ondas de migrantes, transforma áreas nas cidades atingidas pelo crescimento desenfreado, muitas vezes gerando um ambiente de contradições. Mitschein, Miranda & Paraense (Mitschein, Miranda, & Paraense, 1989) chamaram este processo de “urbanização selvagem”; Bertha Becker (Becker, 2013) a classifica como urbanização insalubre.
Apesar de geral, a urbanização na Amazônia está longe de ser homogênea. A criação de novas áreas urbanas e o rápido crescimento urbano, embora comuns, não são ubíquos. Essa heterogeneidade aumenta o grau de dificuldade para a compreensão dos processos locais e marcados pela heterogeneidade. As cidades na Amazônia não são áreas isoladas sob uma redoma: elas fazem parte do todo, parte do sistema regional. Porque as áreas urbanas refletem economias extrativas que prejudicam os ecossistemas locais, a urbanização é uma preocupação ambiental na Amazônia. Os meios de subsistência das pessoas afetam a floresta e são motivo de preocupação global, o que torna o futuro das cidades amazônicas relevante tanto local quanto globalmente (Robertson, 2005).
A intensidade da reconfiguração espacial aliada à ausência de planejamento urbano reforça a condição de região periférica. O surgimento de quinhentos munícios em poucas décadas se apresenta como desafio, mesmo que a divisão territorial fizesse parte de um plano de ocupação audacioso. Este processo de ocupação reproduz condições severas de baixa qualidade ambiental na floresta e nas cidades da floresta, sendo necessário ampliar a discussão sobre sustentabilidade regional ao meio urbano. As cidades, agora, são componentes importantes da região, e sofrem, assim como as florestas, de perda de floresta urbana, quando não sua total ausência, e danos significativos à qualidade de vida da população. Cinquenta anos em cinco era o audacioso slogan de Kubitschek ao construir uma única cidade, Brasília, com a intenção de deslocar o centro do poder para o centro do país. Mas nem mesmo Kubitschek seria capaz de imaginar quase 500 cidades em cinquenta anos.
Agradecimentos: Iniciativa Amazônia +10
Referências
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