Ivan Silva, Paulo Gustavo Correa, Marcus Cardoso, Giovanna Lourinho
Apresentação
As eleições de 2018 representaram um importante ponto de inflexão na trajetória do voto para a Presidência da República no Brasil, tanto indicando (ou, ao menos, consolidando) uma guinada ideológica ultraconservadora, como, ainda, contrariando um dogma analítico no país de que seria fundamental uma certa convergência discursiva ao centro durante as campanhas eleitorais para a conquista de cargos majoritários, dada a característica de nicho dos discursos ideologicamente mais radicalizados. O então candidato Jair Bolsonaro recusou absolutamente a estratégia da moderação discursiva, apostando no aprofundamento dessa radicalização na reta final da campanha do segundo turno, com robustos dividendos eleitorais. O voto brasileiro se tornou, de fato, mais conservador, ou essa guinada possui implicações mais restritas?
Ainda que as relações entre parentesco e poder político não sejam um privilégio das regiões Nordeste e Norte do país, no caso do Amapá a presença de famílias tradicionais, com poder econômico e capital simbólico, exercendo e disputando mandatos, representa uma característica distintiva da política local. No estado, quatro famílias exercem influência decisiva nos partidos políticos e nas eleições locais. É o caso, por exemplo, da família Borges, que se situa no espectro político da direita. Gilvan Borges (MDB) exerceu o cargo de deputado e de senador. Antes dele, seu irmão, Geovanni Borges (MDB), exerceu os mandatos de vereador, deputado federal prefeito do município de Santana e senador. Seu outro irmão, Ronaldo Borges, foi vice-governador do estado enquanto seu primo, Jonas Borges (PTB), exerceu o cargo de prefeito de Macapá e senador. No mesmo espectro político, há a família Gurgel. Aline Gurgel (Republicanos), que exerce o cargo de deputada Federal e foi vereadora em Macapá, é irmã de Vinícius Gurgel (PL), deputado federal e cunhada de Luciana Gurgel, deputada estadual.
A família Capiberibe, no espectro político de esquerda, também é um caso exemplar da relação entre parentesco e poder político no estado. João Capiberibe (PSB), que exerceu os cargos de governador, senador e prefeito de Macapá, é esposo de Janete Capiberibe (PSB), que exerce o mandato de vereadora (2021 até o momento) e já havia sido vereadora de capital, de deputada estadual e de deputada. Camilo Capiberibe (PSB), seu filho, é deputado federal e foi governador do estado e deputado estadual. Raquel Capiberibe (PMN), irmã de João Capiberibe, foi deputada federal e vice-prefeita. Outra família que exerce grande influência na política local é a Góes. Waldez Góes (PDT), atual governador do estado, que anteriormente já havia exercido o cargo de governador e deputado estadual, é esposo de Marília Góes (PDT), deputada estadual e primo de Roberto Góes (UNIÃO), que foi deputado estadual, deputado federal e prefeito de Macapá.
Eleições para o Governo do Estado do Amapá (GEA)
Três fenômenos chamam a atenção na trajetória dos votos para o GEA: em primeiro lugar, resta evidente a prevalência da esquerda como grande campo aglutinador do voto amapaense entre 2002 e 2018 – com destaque para o PSB e o PDT –, atingindo seu melhor desempenho em 2006 (96,3% do total de votos válidos); em segundo lugar, o centro – representado, aqui, tanto em 2002 como em 2006, pelo PSDB – deixou de representar uma opção eleitoral no estado a partir de 2010; em terceiro lugar, também a partir de 2010, verifica-se um crescimento sustentado da viabilidade eleitoral da direita amapaense, que atinge seu ápice em 2018, mesmo ano da eleição do Presidente Jair Bolsonaro.
Gráficos 1 e 2 – Votos para o GEA por perfil ideológico (primeiro turno)
(Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE)
Eleições para a Assembleia Legislativa do Estado do Amapá (ALAP)
Se no caso dos votos para o GEA a esquerda manteve sua hegemonia eleitoral ao longo de todo o período analisado – a despeito da trajetória de queda registrada desde 2010 –, o mesmo não acontece quando consideramos exclusivamente os votos para deputados e deputadas estaduais no Amapá:
Gráficos 3 e 4 – Votos para a ALAP por perfil ideológico
(Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE)
A queda da participação eleitoral da esquerda amapaense começa em 2006 e se mantém constante até 2018, quando atinge seu pior desempenho (27,2%). Em 2010, o campo ideológico da direita se converte no maior bloco, e, a partir de 2014, passa a representar a maioria absoluta dos votos para a ALAP. As expressivas votações recebidas pela esquerda nas eleições estaduais majoritárias não tiveram correspondência nas eleições proporcionais – o que, inclusive, coaduna com boa parte da literatura sobre os padrões de voto no âmbito federal no Brasil quanto à dissociação entre os votos para o Executivo e o Legislativo. O centro oscilou entre 11,6% (em 2014) e 19,2% (em 2006) dos votos, e a direita apresentou um crescimento sustentado ao longo de todo o período, saindo de 33,3% para 58% dos votos totais.
Eleições para a Câmara dos Deputados
No caso dos votos para deputados e deputadas federais, o eleitorado amapaense indicou uma trajetória similar àquela verificada em relação aos votos para o GEA. Ou seja, após um ligeiro aumento na proporção dos votos recebidos pela esquerda entre 2002 e 2006 – pari passu ao processo de consolidação do eleitorado lulista –, inicia-se uma trajetória descendente que se estende até 2018.
Gráficos 5 e 6 – Votos para a Câmara dos Deputados por perfil ideológico
(Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE)
A esquerda saiu de um patamar de 50,4% dos votos totais para a Câmara dos Deputados, em 2002 – alcançando, ainda, 53,9% em 2006 –, para apenas 30% em 2018. A direita, por sua vez, começa com 34,5% dos votos, em 2002, cai para 19,5% na eleição subsequente, chegando a 55,8% em 2018. O centro foi o campo ideológico que apresentou o menor padrão de alteração ao longo do período: embora com relativo crescimento em 2006 (quando alcançou 26,6% dos votos totais), em todos os demais pleitos flutuou em torno dos 15%.
Eleições para o Senado
Tal como nas votações para a Câmara dos Deputados, o voto amapaense para o Senado seguiu uma tendência parecida, reiterando uma queda significativa da esquerda a partir de 2010 – quando atinge seu maior percentual (74,1% dos votos totais) – até chegar ao seu pior desempenho em 2018 (representando apenas 2% dos votos). Há, todavia, um dado distintivo: a expressividade do centro, em detrimento de um teto menor para o crescimento do voto de direita.
Gráficos 7 e 8 – Votos para a Câmara dos Deputados por perfil ideológico
(Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE)
Eleições para a Presidência da República
A trajetória do voto amapaense para a Presidência da República indica uma queda proporcional da esquerda já a partir de 2002 – com algumas oscilações em 2010 e 2014 –, que sai de 91,4% dos votos totais, em 2002, para 46,6%, em 2018. O centro flutua pouco até 2014, e cai bastante em 2018, e a direita, por sua vez, cresce vertiginosamente entre 2014 e 2018 – saindo de 1,8% para 45,1%.
Gráficos 9 e 10 – Votos para a Presidência da República por perfil ideológico (primeiro turno)
(Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE)
Conclusão
A análise da trajetória do voto amapaense a partir de 2002 parece endossar a hipótese de que o eleitorado teria passado a se comportar de modo mais conservador nas eleições, já que foi verificado um aumento constante na proporção de votos recebidos pela direita em todos os pleitos e em todos os níveis verificados.
O voto de centro é o que menos foi alterado ao longo desse período (pelo menos quanto ao Legislativo): embora tenha deixado de pontuar nas eleições para o Executivo estadual em 2010, tanto para a ALAP quanto para a Câmara dos Deputados os votos de centro flutuaram entre 10% e 20% em todos os pleitos analisados. A exceção, aqui, são os votos para o Senado, em que, de fato, o centro galvanizou parte significativa do eleitorado amapaense, representando a maioria absoluta dos votos tanto em 2006 como em 2018.
Por sua vez, a esquerda amapaense foi o bloco ideológico que apresentou o maior encolhimento: considerados apenas os votos para o Legislativo – tanto estadual como federal –, o campo ideológico que já havia representado por volta de metade dos votos totais – e, para a Câmara dos Deputados, a maioria absoluta dos votos em 2002, 2006 e 2010 –, passou a representar menos de um terço em 2018 – e, no caso do Senado, apenas 2% dos votos. As eleições para o GEA são o espaço em que a esquerda amapaense ainda apresenta maior musculatura: embora tenha apresentado trajetória de queda nos votos totais a partir de 2010, ela nunca deixou de representar pelo menos dois terços dos votos totais no primeiro turno.
É preciso, todavia, matizar essa centralidade eleitoral da esquerda no Amapá: o PDT amapaense possui uma maleabilidade ideológica bastante grande – por vezes se comporta como partido mais à esquerda e, por outras, comporta-se como partido conservador. Nesse sentido, as eleições de 2018 foram bastante emblemáticas em dois pontos específicos: no segundo turno, de modo a se contrapor ao candidato João Capiberibe (PSB) – quadro político historicamente ligado à esquerda –, o candidato Waldez Góes (PDT) mobilizou o discurso de uma defesa enfática da Polícia Militar, inclusive acusando o seu opositor de defender a sua extinção; ademais, a relação do candidato do PDT com a agenda nacional ao longo de 2018 ilustrou bem essa maleabilidade ideológica – saindo de um protesto contra a prisão do Lula em abril de 2018 (seguido por uma tentativa frustrada de visita ao ex-Presidente no cárcere em Curitiba) para o apoio a Jair Bolsonaro no segundo turno (contrariando a orientação do próprio partido) das eleições presidenciais.