Francisco Afonso Nepomuceno
Desde sua regulamentação em 1990, os moradores da Reserva Extrativista Chico Mendes, vivem o dilema da busca por uma alternativa econômica capaz de fazer frente ao sustento de suas famílias e que seja compatível com o conceito de sustentabilidade que embalou o sonho dos que conquistaram o território da RESEX. O movimento dos seringueiros na região do Alto Acre – nos municípios de Xapuri, Epitaciolândia, Brasiléia e Assis Brasil, local onde a luta pela posse da terra e a disputa com os fazendeiros ocorreu com maior intensidade, na década de 1980 – teve grande influência da Igreja progressista e da esquerda. Nesse sentido, o tema do cooperativismo e de saídas econômicas autogestionárias esteve sempre presente nos debates das organizações do movimento.
O presente boletim pretende analisar o processo histórico de como se deu a experiência dos seringueiros com o cooperativismo na busca de alternativas econômicas mesmo antes da conquista da RESEX. Vale destacar que a Cooperativa Agroextrativista de Xapuri – CAEX, por ter sido a primeira iniciativa dos seringueiros nessa área, será o objeto principal a ser analisado nesse boletim, somado a outras experiências recentes. Terá como embasamento para a análise descritiva a ser formulada, produções acadêmicas sobre o cooperativismo e como metodologia, depoimentos, entrevistas e dados sobre o tema.
Foi no município de Xapuri o lugar onde o empreendimento, na busca por uma alternativa econômica para melhorar a vida dos seringueiros e de suas famílias, ganhou concretude mesmo antes da conquista da RESEX. A criação da Cooperativa Agroextrativista de Xapuri – CAEX, tendo como seus fundadores um grupo de 34 seringueiros de Xapuri, emergiu a partir do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) em 1988. Além da necessidade imperativa dos seringueiros de organizarem um modo de vida que lhes possibilitasse sobrevivência digna, dois fatores contribuíram para essa iniciativa. De um lado o caráter gregário do modo de vida no seringal indutor da necessidade de vida social. As colocações (unidades produtivas) são geograficamente dispersas, levando os seringueiros criarem ambientes de laços sociais, festas, atividades religiosas e, no período em tela, a mobilização sindical. Do outro, a influência da ideologia da esquerda que sempre trabalhou com o conceito de cooperativismo e administração autogestionária em bases mais horizontalizadas, em contraposição ao modo de gestão capitalista fundado nos valores da individualidade e do poder verticalizado, típico do binômio mando e obediência.
Cabe pôr em relevo uma outra particularidade presente nas bandeiras desfraldadas pelo movimento dos seringueiros. A esquerda no século XX, desde que o debate ambiental passou a fazer parte da pauta política, separou a luta por melhorias sociais do debate ecológico. O paradigma da luta de classe presente nos cânones do marxismo, adquiriu uma “pureza”, a ponto de ser tratado por uma esquerda mais ortodoxa como um tema hermeticamente fechado, impermeável por assim dizer. Conectar os temas da luta de classe através da luta pela posse da terra contra os fazendeiros e a pauta do meio ambiente, fazia sentido para quem vivia e produzia a vida material na floresta. Foi nesse contexto que a ideia de fundar uma cooperativa foi gestada.
Para além da economia
A mobilização político-social dos seringueiros na resistência pela posse da terra criou um modelo organizacional onde grande parte dos seus integrantes era militante sindical e membro do Partido dos Trabalhadores, o partido de Chico Mendes. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), era um espaço estratégico. Todos os seringueiros que vinham na cidade passavam no sindicato e pernoitavam, atavam suas redes e dormiam nas dependências da sua entidade. Era um espaço de conversação permanente, adequado para a informação e a formação política, afinal de contas, a conversa é a matéria-prima da política por excelência. Foi na dinâmica dessas prosas que a ideia de criar uma cooperativa veio à tona e foi idealizada.
A solidez do movimento pode ser percebida na coerência em condicionar as iniciativas adotadas à manutenção da floresta. Criar uma cooperativa cuja base era a coleta de castanha e a produção de borracha, representava, naquele momento, muito mais do que uma atividade econômica. Era um modo de extrair o que de melhor a natureza poderia conceder para melhorar o patrimônio material das famílias, sem causar dano ao patrimônio natural e com isso preservar o modo de vida. No contexto do embate político aberto contra os fazendeiros, defensores e praticantes da pecuária extensiva cuja dinâmica requeria o desmatamento como condição para implementar sua atividade econômica, a CAEX fazia parte do repertório da resistência. Era uma prova de que, para além do progresso apregoado pelos defensores do desmatamento, havia vida digna compatível com a manutenção da floresta.
No dizer do economista Mário Jorge Fadell, que durante muito tempo trabalhou como gestor da CAEX, a cooperativa era a extensão do movimento “A CAEX foi pioneira na criação e funcionamento de um sistema cooperativista, a partir do acúmulo sindical dos seringueiros, que influenciou iniciativas em todo o Estado do Acre e Região Amazônica quanto a esse modo de emancipação da rede de comercialização historicamente exploradora de sua renda. Essa relação é intrínseca ao ponto de constar no Estatuto da CAEX a obrigatoriedade de serem associados somente os sócios que também fossem associados ao STR de Xapuri”. O vínculo político-ideológico precedia a questão econômica, ainda que esta tenha sido a razão motivadora do empreendimento.
A construção da CAEX representava relação com duas temporalidades, uma espécie de encontro de contas com o passado da vida no seringal, de um lado, e a resistência no tempo presente no enfrentamento com os fazendeiros de outro. A criação da cooperativa modificou por completo a relação dos seringueiros a ela vinculados e sua renda com a venda da castanha e da borracha. Submetidos historicamente a praticarem preços unilateralmente imposto por seringalistas e marreteiros, os seringueiros viram pela primeira vez algo parecido com o sonhado “preço justo”. O preço da lata de castanha (métrica utilizada na comercialização do produto) mais que dobrou, melhorando não só a vida do seringueiro cooperado, como também dos não cooperados que testemunharam os comerciantes elevarem o preço da castanha por conta do ingresso da CAEX no mercado.
A cooperativa não se restringiu a comprar borracha e castanha somente dos seus associados, ela extrapolou seu alcance e ampliou seus tentáculos para além do seu quadro de sócios. Essa atitude movimentou o mercado desses dois produtos no âmbito e nas adjacências de atuação da CAEX. “Mesmo não atingindo a totalidade dos seringueiros das reservas, os preços de compra da cooperativa servem de referencial para os preços praticados pelos marreteiros”, asseverou Polanco, ao ser entrevistado por Costa Filho (1995, p. 112).
Em sua dissertação de mestrado, Costa Filho (1995) disseca essa problemática. Diz ele “É inegável a contribuição da CAEX para a melhoria de vida dos seringueiros. O maior destaque da sua ação deve ser dado à comercialização e ao abastecimento, dois dos maiores problemas da reserva, em função das enormes distâncias das colocações e da precariedade das vias de acesso. Contribuiu para a quebra do sistema de dependência a que secularmente os seringueiros eram submetidos pelas cadeias de comercialização desfavoráveis aos seus produtos” (Costa Filho, 1995, p. 111).
A criação da CAEX inaugurou um novo ciclo nos antigos seringais de Xapuri e adjacências. O aviamento, por mais de um século, foi o sistema praticado nos seringais acreanos com a força de monopólio. Estruturado numa cadeia produtiva que ia da Casa aviadora (responsável pelo fomento de todo o processo) até a colocação (unidade produtiva nos seringais) onde estava o seringueiro (a força de trabalho responsável pela produção), esse sistema foi utilizado nos seringais amazônicos desde o século XIX. No Acre, desde a década de 1870 (Martinello, 2004; Oliveira, 1982; Garcia, 1986). Nem sempre os seringueiros tinham saldo junto ao Barracão (unidade gestora do seringal), localizada às margens dos rios onde morava o seringalista (dono do seringal). O processo era indutor para enredar o seringueiro nas suas amarras, desde o início. Ao chegar no barracão, vindo do Nordeste onde fora recrutado pela casa aviadora, o futuro seringueiro, além das instruções, recebia um kit básico de mantimentos e utensílios pelos quais teria que pagar. Dado os preços escorchantes impostos unilateralmente pelo patrão, o seringueiro já iniciava deficitário no seu novo ofício. Essa era a grande armadilha que vinculava compulsoriamente o seringueiro à atividade extrativa, sem condição de ter saldo suficiente para se desvencilhar da dívida e voltar para sua erra natal, caso quisesse.
Nos períodos de descenso no preço da borracha, principalmente após o término da segunda guerra mundial, quando os seringais de cultivo do sudeste asiático voltaram a operar sob os ditames dos Estados Unidos, os marreteiros (comerciantes ambulantes) exerciam o papel outrora praticado pelo seringalista, isto é, vendiam as mercadorias pelo maior preço que podiam e compravam pelo menor. A CAEX fraturou esse ciclo, comprando e vendendo pelo valor de mercado praticado na cidade de modo a valorizar o seringueiro. Desnaturalizou o processo que era visto por muitos seringueiros, dado o tempo da sua existência, como sendo o único possível.
A CAEX teve oscilações e crises como todo empreendimento individual ou coletivo, mas deixou um legado para os que participaram do processo de sua construção e funcionamento. A CAEX não foi a única cooperativa que atravessou a vida na RESEX Chico Mendes, sobretudo em Xapuri. No dia 4 de agosto de 2005 foi criada a COPERFLORESTA, com a chancela do governo do Estado do Acre, essa cooperativa tinha o propósito de atuar exclusivamente no território das Reservas Extrativistas e no Projeto de Assentamento Extrativista PAE. Atuou de modo intenso na RESEX Chico Mendes com o chamado Manejo Florestal Madeireiro comunitário. Apesar do robusto volume de recursos empregado pelo governo do Estado e outras instituições, o empreendimento malogrou, deixando uma dívida considerável no nome da cooperativa.
A explicação mais plausível para o insucesso do empreendimento da COOPERFLORESTA, além do mau gerenciamento, foi o processo de sua implementação. Mesmo o governo tendo feito encontros com moradores das Reservas Extrativistas, a proposta não veio de baixo. Tratou-se de uma teoria de técnicos, bem-intencionados, mas sem a participação efetiva do movimento, como era de hábito. Por ser um governo parceiro, com o sugestivo slogan “Governo da Floresta”, a confiança de que o projeto seria benéfico ajudou na anuência imediata de muitas famílias contactadas. No relatório da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Acre – SEMA de 2018, intitulado (SEMA + Floresta – relatório de 2018) traz um quadro demonstrativo do rendimento anual das famílias em várias comunidades e os tentáculos da COOPERFLORESTA. É fato que teve um certo alento, mas sem o impulso quase paternal do governo estadual o projeto arrefeceu, ou seja, não era tão sustentável como fora apregoado.
Nas duas últimas décadas, a Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Estado do Acre (COOPERACRE) se impôs como sendo a maior cooperativa agroextrativista do Acre. Fundada em dezembro de 2001, tem como missão “organizar, representar, garantir a sustentabilidade da produção extrativista agregar valor aos produtos, promover a igualdade social e econômica, respeitar os valores das populações tradicionais e os princípios da preservação da floresta” (SILVA, 2018, p. 37). Dirigida pelo filho de seringueiro, Manoel Monteiro, o Manoelzinho. Formado em contabilidade, foi alfabetizado pelo Projeto Seringueiro, um programa de alfabetização coordenado pelo Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA), uma ONG parceira do Movimento dos seringueiros desde o início dos anos 1980. A COOPERACRE cresceu de modo contínuo a ponto de ser classificada pela Organização das Cooperativas Brasileira (OCB), a qual é vinculada, como uma potência. No portal de notícia da OCB/AC de 07/07/2023, lê-se:
Atualmente, a COOPERACRE exporta para nove países, possui 22 associações e 14 cooperativas filiadas, que atuam no fortalecimento das cadeias produtivas da borracha castanha-da-Amazônia, café, palmito e polpa de frutas. Além do Acre a cooperativa adquire matéria-prima dos Estados do Amazonas, Mato Grosso e Pará com negociação para ampliar essa relação comercial com os Estados do Amapá e Roraima e com os países vizinhos, Peru e Bolívia.
A Cooperativa Agroextrativista de Xapuri (COOPERXAPURI) é o exemplo mais recente desse tipo de empreendimento. É dirigida pelo filho de seringueiro, Tião Aquino (Professor de matemática), e também tem gerado bons frutos. Fundada em 2018, já conta com 244 sócios. Tem como missão, segundo consta no seu planejamento de novembro de 2023, “organizar, beneficiar e comercializar a produção agroextrativista de Xapuri, promovendo negócios justos e produtos de qualidade, visando a garantia dos territórios, a manutenção da floresta em pé e o bem-estar das famílias cooperadas”. Na assembleia geral extraordinária da COOPERXAPURI da qual participei em dezembro de 2024, a convite do presidente da OCB/AC, Valdemiro Rocha, a pauta principal era a distribuição de um bônus para os extrativistas coletores de castanha. Esse gesto denota o caráter superavitário da cooperativa nos seus primeiros passos e revela um horizonte promissor.
Conclusão
O neoliberalismo como doutrina hegemônica do sistema capitalista há mais de 40 anos, tem no individualismo um dos seus principais pilares. Uma das estratégias utilizada pelos agentes do sistema capitalista, historicamente, tem sido dilacerar os comuns da vida comunitária ou de qualquer lugar que deseja exercer o domínio. O espírito cooperativo, o sentimento de pertencimento, a solidariedade como norma de conduta cria laços fortes nas comunidades mais pobres, nos mais distintos lugares: terras indígenas, quilombolas, territórios de periferia, reservas extrativistas, seringais. Romper com esses laços é parte constitutiva de uma estratégia que enseja uma nova forma de ver o mundo; em que o eu, deve prevalecer sobre o nós, onde o ter deve ser mais altaneiro que o ser e o sucesso de poucos pressuponha o fracasso da maioria.
É nessa perspectiva que a iniciativa de criar a CAEX na década de 1980, sem experiência acumulada, só com a força do coletivo, pode ser classificada como ousadia e um ato de resistência. Decantada pelos defensores do desmatamento como sinônimo de progresso, a pecuária extensiva, em geral, é a antítese dos valores que orientam a vida dos seringueiros. Costuma ser um empreendimento familiar, personificado na figura masculina do pai, daí o fazendeiro. Dotada de uma estrutura organizacional verticalizada e como todo capitalista, o objetivo é o lucro com todas as consequências sociais e ambientais que pode acarretar.
Projetos coletivos sempre serão mais compatíveis com a sustentabilidade ambiental, sobretudo na área econômica. Nesse sentido, o histórico de cooperativas, no caso de Xapuri, inaugurado pela CAEX, legou um patrimônio cultural importante que certamente contribuiu para iniciativas posteriores como são os casos da COOPERACRE e da COOPERXAPURI.
BIBLIOGRAFIA
COSTA FILHO, Orlando Sabino da. Reserva Extrativista: Desenvolvimento Sustentável e Qualidade de vida. Dissertação de mestrado, UFMG, 1995.
GARCIA, Hélio. Conflitos pela terra no Acre. Curitiba: Editora Linarth, 1987.
MARTINELLO, Pedro. A batalha da borracha. Rio Branco: EDUFAC, 2024.
OLIVEIRA, Pinto. O Sertanejo o Brabo e o Posseiro. Curitiba: Editora Linarth, 1982.
SILVA, Káritha. A Crítica da Vida Cotidiana da Reserva Extrativista Chico Mendes. Dissertação de Mestrado, UFRGS. Porto Alegre, 2018.