O Sistema OCB, a crise da Ditadura e o processo de Redemocratização

Ivan Silva e Luci Maria Teston

Introdução

Este boletim é o terceiro da série centrada na discussão do sistema cooperativista em uma perspectiva teórico-conceitual e histórica, desde seus primórdios, passando pela constituição, no Brasil, do Sistema OCB, até a sua relação com o cooperativismo contemporâneo em seus vários matizes. O primeiro boletim teve como foco a realização de uma análise concisa e resumida da evolução do conceito de cooperativismo, desde o seu surgimento nas lutas sociais e políticas do final do século XVIII e início do XIX, até sua interpretação atual, com o objetivo de situá-lo politicamente e ideologicamente ao longo dessa trajetória; o segundo esteve centrado no exame da trajetória do nacional-desenvolvimentismo no Brasil e sua relação com o surgimento do Sistema OCB, em meio à consolidação de um modelo de cidadania regulada, tutelada por um modelo corporativo de relação Estado-sociedade.

Desta vez, a análise recai para a relação entre o Sistema OCB, a crise da ditadura e o processo de redemocratização a partir do papel que a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a União Democrática Ruralista (UDR) exerceram como instrumentos de pressão patronal no meio agrário brasileiro. O processo de modernização do Brasil, iniciado de forma mais sistemática a partir da década de 1930, constitui um dos períodos mais marcantes da história política, econômica e social do país. Ancorado na estratégia nacional-desenvolvimentista, esse período foi caracterizado por uma série de reformas institucionais e econômicas voltadas à construção de uma nação moderna e industrializada. Diferentemente de modelos revolucionários observados em outros contextos históricos, o desenvolvimento brasileiro foi marcado por um pacto entre elites urbanas emergentes e as oligarquias rurais tradicionais, mediado pelo Estado. Esse arranjo teve implicações profundas na formação das estruturas de poder e na relação entre as classes sociais no país.

O modelo desenvolvimentista brasileiro, enquanto buscava integrar a população urbana crescente e modernizar setores produtivos, manteve praticamente intactas a estrutura agrária e as desigualdades estruturais no campo. No entanto, o setor rural desempenhou um papel crucial como financiador indireto do processo de industrialização, por meio do excedente econômico gerado pela agroexportação. Essa dinâmica reforçou um padrão de modernização conservadora.

O período da ditadura (1964-1985) emergiu como um momento de continuidade e adaptação do nacional-desenvolvimentismo. Sob um regime burocrático-autoritário, o governo promoveu políticas de modernização rural orientadas pela lógica da modernização conservadora, que priorizava o capital agrário empresarial e sufocava as iniciativas de reforma agrária e associativismo contestatório. Organizações como a CNA, a UDR e a OCB desempenharam papéis centrais na articulação do associativismo patronal, servindo tanto como instrumentos de consolidação da hegemonia agrária quanto como barreiras contra as demandas dos movimentos sociais e camponeses.

A criação da UDR e o fortalecimento da CNA e da OCB enquanto associações patronais são exemplos de como o capital agrário respondeu aos desafios e ameaças apresentados pela crescente mobilização do campo e pela ascensão de movimentos sociais e sindicais durante a redemocratização. A atuação dessas organizações, tanto no período autoritário quanto no processo constituinte da década de 1980, revela a complexidade das tensões entre modernização, poder político e disputas por direitos sociais e econômicos. Ao mesmo tempo em que a UDR consolidava sua influência nos círculos de poder, movimentos como o MST e a Pastoral da Terra reconfiguravam o cenário político e social do campo, colocando em evidência as contradições do modelo agrário brasileiro.

Periferia, subdesenvolvimento e nacional-desenvolvimentismo

A estratégia de desenvolvimento conhecida como via prussiana, promovida pelo Estado varguista, visava superar o amorfismo da sociedade civil e os problemas decorrentes do liberalismo, criando, assim, as bases estruturais para a constituição da modernidade no Brasil. Neste modelo, o Estado desenvolvimentista não se ancorava em uma burguesia revolucionária que pudesse romper com as estruturas tradicionais, mas sim em um acordo entre as oligarquias rurais e os novos setores urbanos. Com uma abordagem corporativista, o Estado atua como mediador das demandas sociais, evitando conflitos diretos entre as classes (SALLUM JR., 1994). A partir de 1930, o país acelerou sua transição de uma economia centrada na exportação de produtos primários para uma sociedade urbana e industrial, com o mercado interno desempenhando um papel central na acumulação de capital, sob a liderança política das novas elites dirigentes.

A partir de 1930, consolidou-se, no país, um modelo de desenvolvimento direcionado à construção da Nação brasileira, fundamentado em um compromisso orgânico com a modernidade e estruturado em três eixos principais: a garantia da unidade nacional, a integração domesticada de novos grupos sociais – especialmente o operariado urbano em expansão – e a criação de instituições sólidas. A fundação do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) foi decisiva nesse sentido, na medida em que promoveu a modernização e a profissionalização da burocracia, fortalecendo o Estado e sua capacidade de liderar a transformação social e econômica do país.

O modelo de sociedade abrangente que se consolidou a partir dos anos 1930, conhecido como nacional-desenvolvimentismo, moldou a modernização acelerada do país até a década de 1980. Desencadeado e dirigido pelo Estado, pretendia alcançar não apenas a produção de um mercado interno de importância, mas também a criação de instituições adequadas à modernidade (NOBRE, 2013, p. 30).

Os anos 1930 trouxeram ao país um novo referencial normativo para as políticas públicas, que unia o ideal nacionalista (cada vez mais disseminado entre as elites brasileiras desde o final da I Guerra Mundial) às ideias protecionistas advindas dos países de inserção tardia no processo de industrialização, em especial a Alemanha e os Estados Unidos. Contando com o apoio político e militar dos tenentes, pode implementar um redesenho institucional fundamentado num referencial nacionalista e intervencionista (numa espécie de keynesianismo antes de Keynes), reunindo ao redor do Clube 3 de Outubro setores da burguesia industrial, políticos e intelectuais, como Oliveira Viana (LEOPOLDI, 1999). As novas estruturas institucionais criadas no período entre 1930 e 1937 serviram tanto como elemento indutor da configuração de uma burocracia moderna no país, como também enquanto elos de amarração e intermediação entre os interesses contraditórios que começavam a surgir do processo de industrialização no Brasil, tal como expresso por Leopoldi (1999):

Entre 1930 e 1937 criaram-se os fundamentos de uma administração centralizada e baseada num corpo de técnicos capacitados e recrutados por concurso para as novas agências governamentais. Para tratar de políticas agrícolas, industriais e de comércio exterior, criaram-se comissões dentro dos ministérios, nas quais burocratas discutiam com empresários de cada setor as políticas referentes a seus interesses. Implantaram-se no nível federal políticas antes adotadas regionalmente. Criaram-se anéis burocráticos, reunindo em conselhos, institutos e departamentos funcionários governamentais e empresários (como no caso do café, do açúcar, do cacau, do mate etc.). Os ministérios da Fazenda e do Trabalho tiveram papel fundamental nesse processo de incorporação de interesses de setores sociais nas políticas do Estado (LEOPOLDI, 1999, p.116)

Se o mundo urbano no Brasil vivenciava um processo de intensa, embora paulatina, transformação, o mesmo não se verificou quanto às relações no campo: as estruturas agrárias situadas fora do circuito hegemônico do país se mantiveram praticamente congeladas, enquanto no centro-sul o que se verificou foi uma perda de boa parte do dinamismo da agricultura cafeeira (apesar dos esforços defensivos estatais durante a década de 1930), sem que se produzissem transformações mais estruturais – com a expansão da fronteira produtiva para o oeste. Neste aspecto, inclusive, reside uma das principais semelhanças entre os diversos processos de industrialização pós-1930 na América: o excedente econômico gerado pelo setor agrário foi o principal fornecedor de divisas para a importação de bens de capital, combustíveis e matéria-prima necessários à industrialização (CAVAROZZI, 1977).

O golpe de 1964, resultado de uma articulação político-militar, contraditoriamente não rompeu com os fundamentos da Era Vargas, como alegava ser seu propósito. Em vez disso, prolongou aspectos do ciclo varguista, especialmente do Estado Novo, ao reafirmar o modelo desenvolvimentista como a feição por excelência do desenvolvimento brasileiro. Contudo, esse modelo foi adaptado a uma lógica conservadora e concentradora de riqueza, distanciando-se das ideias de desenvolvimento mais equitativo e descentralizado promovidas por Celso Furtado (WERNECK VIANNA, 1995).

A ditadura militar deu continuidade, à sua maneira, ao nacional-desenvolvimentismo. A inflação funcionava como importante mecanismo de manutenção das desigualdades, tendo sido como que oficializada pelo golpe de 1964 pelo instituto da correção monetária, que a incorporou aos contratos e aos preços de maneira geral como elemento permanente. Em uma economia fechada, a inflação se amoldou ao objetivo de promover rápido crescimento (e, com ele, uma melhoria geral dos padrões de vida) sem alterar os padrões historicamente desiguais de distribuição de renda do país (NOBRE, 2013, p. 30-31)

O Estado Burocrático-Autoritário, instaurado com o golpe de 1964, legitima-se por meio de dois objetivos centrais: restabelecer a ordem política e social, por um lado, e preservar a hegemonia da dominação econômica burguesa, por outro. Ademais, procura excluir os setores populares mobilizados pela intensa atividade político-ideológica das décadas de 1950 e 1960. Essa exclusão se concretiza pela supressão da cidadania e da democracia, pela marginalização econômica das classes trabalhadoras e pela transformação das questões sociais em problemas técnicos, afastando-as do debate político e coletivo (O’DONNELL, 1990).

Dois fenômenos fazem, de maneira paradoxal, um contraponto aos profundos retrocessos vividos no período (embora limitados e condicionados pela estrutura repressiva). O primeiro se situa no campo dos direitos políticos: entre 1964 e 1985 houve o funcionamento quase ininterrupto, embora farsesco e antirrepublicano, do Congresso Nacional, aliado ao crescimento significativo do eleitorado – em 1960 o número total de votantes representava 18% da população, ao passo que em 1986 o número salta para 47%[1] (CARVALHO, 2014). O segundo fenômeno consiste no fato de que é durante a ditadura que os direitos sociais são de fato estendidos ao campo, cujo maior exemplo é a unificação e universalização da previdência para os trabalhadores rurais, com a criação da Funrural em 1971. Aliado à concessão dos direitos aos trabalhadores urbanos durante as décadas de 1930 e 1940, tal fator parece confirmar as ponderações feitas por Santos (1979) e Carvalho (2014) de que, durante o século XX, a extensão dos direitos sociais no Brasil coincidiu com momentos de fechamento do regime, o que, inclusive, dá um caráter distinto aos mesmos direitos, vistos não como conquistas de lutas políticas e sociais, mas como concessões de um Estado paternalista, a quem deveriam gratidão e lealdade, reforçando a característica de cidadania regulada no país.

Se o apoio do grande capital agrário – aliado à extensão dos direitos previstos na CLT aos trabalhadores do campo – se constituiu em um pilar fundamental para a sustentação do nacional-desenvolvimentismo concentrador dos militares, as associações por produto e associações de cooperativas empresariais agrárias foram, ao mesmo tempo, fiadoras cruciais do pacto autoritário e fortemente fomentadas pela ditadura (COSTA, 2012), tendo exercido, ainda, papel crucial nos debates em torno da questão agrária durante o processo constituinte de 1987-1988. Três organizações merecem destaque: a União Democrática Ruralista (UDR), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Associativismo patronal no campo, crise de hegemonia e processo constituinte: os casos da UDR, da CNA e da OCB

A UDR foi fundada, de modo informal, em Presidente Prudente – SP, em 1985, sendo formalizada a sua criação nacional no ano seguinte. Sua fundação, aliás, deve ser compreendida como uma reação do capital agrário ao avanço das lutas camponesas, por um lado – com o crescente processo de politização do campo no esteio da atuação das Ligas Camponesas, de Francisco Julião –, e o compromisso assumido pelo Presidente João Goulart no sentido da construção da reforma agrária no país (BARBOSA, 2018): a aprovação, em março de 1963, do Estatuto do Trabalhador Rural, representou um forte incentivo à sindicalização no campo, que, aliada à elevação da reforma agrária à condição de eixo estruturante do desenvolvimento brasileiro a partir de sua inclusão no pacote das reformas de base, acendeu uma luz vermelha no horizonte político do latifúndio monocultor brasileiro (DELGADO, 1985), organizado, até então, em torno da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), fundada em janeiro de 1964.

O golpe de 1964 promoveu uma reorientação da política agrária no país: a promulgação, ainda naquele ano, do Estatuto da Terra representou um freio importante tanto ao processo de sindicalização combativa dos trabalhadores rurais quanto ao avanço da luta pela reforma agrária, estabelecendo o primado exclusivo da modernização conservadora do campo a partir de uma concepção de desenvolvimento rural eminentemente empresarial (DELGADO, 1985; SILVA, 1981). Ademais, a estrutura corporativa do Estado brasileiro consolidada pela ditadura garantia à CNA, uma agremiação patronal rural brasileira fundada em 1964, amplo acesso aos anéis burocráticos, e, assim, um contato direto entre o grande capital agrário e as estruturas formais de poder no país.

A CNA tem atuado com um órgão máximo de representação do sistema sindical patronal rural, constituída por sindicatos espalhados por todo o país e organizados nos estados em federações. O perfil dos associados da CNA envolve, basicamente, empresários rurais, os quais podem ou não deter também terras improdutivas. São eles que, para além das questões envolvendo assuntos fundiários, buscam atuar no contexto da elaboração de políticas agrícolas (LEAL, 2002; GALVÃO, 2020).

A criação da OCB, em dezembro de 1969, também se insere no diapasão de esforço de domesticação dos movimentos contestatórios à hegemonia do latifúndio monocultor – nesse caso, a partir de um controle estrito do movimento cooperativista brasileiro (SILVA, 2006). Tornada o único meio de acesso ao Estado por parte do movimento cooperativista brasileiro, a OCB se estruturou como um instrumento político de articulação e coesão política do associativismo patronal, por um lado, e enquanto arma de desarticulação e enfraquecimento do associativismo contestatório, por outro (SILVA, 2006).

A despeito do crescimento econômico acelerado, e da relativa base de apoio construída junto a setores da classe média e do grande empresariado, a década de 1970 marca o início da derrocada da ditadura. Os choques do petróleo na década de 1970 levaram à retração do fluxo de capitais provenientes do centro do capitalismo internacional para a América Latina. A situação se intensificou com a elevação das taxas de juros promovida pelo Banco Central dos Estados Unidos durante o governo Reagan. Os países que dependiam de poupança externa para financiar seus modelos de desenvolvimento foram profundamente afetados, tornando-se incapazes de honrar os pagamentos da dívida pública. Essa crise não apenas comprometeu os alicerces macroeconômicos dessas nações, mas também corroeu o pacto social que dava legitimidade simbólica e política aos regimes autoritários da região, como o brasileiro (SALLUM JR., 2003).

A crise fiscal do Estado brasileiro nos anos 1980 fez com que as políticas de industrialização fossem abandonadas pelo objetivo imediato de pagamento dos serviços da dívida externa, por intermédio de uma política de geração de elevados saldos comerciais (produzindo um brutal desajuste interno e o acelerado aumento da dívida pública) e a financeirização da riqueza (também em decorrência da perspectiva decrescente da taxa de lucros no setor produtivo) (POCHMANN, 2010).

A Constituição de 1988, construída em meio a um amplo e participativo debate democrático, representa um divisor de águas no processo de redemocratização do Brasil. Entretanto, a transição brasileira não se esgota no período constituinte de 1987-1988, estendendo-se ao longo da primeira metade da década de 1990, evidenciando, assim, o caráter estrutural da crise dos anos 1980:

A transição política brasileira começou com a crise de Estado de 1983-1984 e terminou com o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, momento em que o Estado ganhou estabilidade segundo um novo padrão hegemônico de dominação, moderadamente liberal em assuntos econômicos e completamente identificado com a democracia representativa (SALLUM JR., 2003, p. 35-36).

É preciso compreender a transição brasileira não apenas como transição de regime, mas sobretudo como transição de um modelo de Estado constituído no país desde a década de 1930 (SALLUM JR., 1994). Há na América Latina, durante os anos 1980, um profundo processo de alteração da relação entre poder político, sociedade e mercado e a forma de inserção internacional das economias nacionais (embora em ritmos e formas distintas), marcado por um movimento histórico internacional de associação estratégica (em especial após o declínio do bloco soviético) entre democracia e neoliberalismo (abertura política e econômica) como o fundamento da modernidade contemporânea (SALLUM JR., 1999). Neste momento, o Estado brasileiro entra em um processo de crise de hegemonia, em decorrência dos prejuízos causados pela crise fiscal, de modo que há um completo desarranjo da articulação entre Estado, capital privado nacional, capital privado internacional, e os setores público e privado (em especial a classe média) (SALLUM JR., 1996).

Segundo Bruno (2002), a passagem de bastão do último governo militar para um Presidente civil – ainda que em uma eleição indireta – parecia sugerir o alvorecer de um período marcado pelo rompimento do monopólio da terra (ou, pelo menos, da construção de certos limites a ele). O processo de redemocratização dá novo gás à luta pela reforma agrária, renovada pela atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fundado em 1984 e com crescente capilaridade social e política, além da Pastoral da Terra e do recém fundado Partido dos Trabalhadores (1980).

Em 1985, é apresentado pelo Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD) o I Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), cujo objetivo era resgatar a perspectiva da desapropriação como interesse estratégico nacional (BARBOSA, 2018), configurando-se como marco na reação das associações políticas do capital agrário, inclusive no sentido da criação da UDR.

Durante os governos que seguiram ao regime militar observa-se uma disputa declarada entre forças pró reforma agrária, representadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), e forças antirreforma agrária, cujo expoente era a União Democrática Ruralista (UDR), sendo um dos objetos desta disputa o PNRA lançado pelo governo Sarney (LEAL, 2002).

Portanto, um dos momentos em que a reforma agrária esteve no centro de discussões ocorreu em 1985, com o PNRA, o qual estabelecia a desapropriação por interesse social e estabelecia uma indenização calculada com base no valor declarado pelos proprietários relacionado ao Imposto Territorial Rural, geralmente abaixo do valor de mercado. O anúncio do PNRA por Sarney causou desaprovação generalizada entre agroindustriais e setores liberais, em especial, pelo fato de não terem sido ouvidos antes do anúncio do Plano (MENDONÇA, 2016).

Esse cenário mobilizou a CNA e a OCB a exercerem pressão no Congresso para a apresentação de uma contraproposta, a qual foi a base da versão definitiva do PNRA. Esta nova versão enfatizava a negociação e não mais a desapropriação e alargava o entendimento da função social desempenhada pelo imóvel (LEAL, 2002). A OCB, diante do PNRA, não negou a necessidade de serem promovidas alterações na estrutura fundiária do país, porém, parte das lideranças da Organização defendia a definição das próprias cooperativas como instrumentos de reforma agrária, entendida como a entidade mais adequada para a sua concretização (MENDONÇA, 2016).

A UDR, criada um mês após a apresentação do PNRA, tornou o jogo político envolvendo as disputas e conflitos entre os grupos agrários constituídos ainda mais complexo (MENDONÇA, 2016). As motivações do movimento de organização política dos segmentos envolvendo a burguesia agrária e agroindustrial diante das resoluções presentes no PNRA envolviam o contexto de a terra estar passando por um processo especulativo, sendo considerada um ativo financeiro importante.

Considerações finais

Tanto a CNA quanto a OCB são associações nas quais é comum a conexão entre a defesa dos interesses relacionados aos problemas de produção e a defesa da propriedade, atuando, portanto, não somente no contexto de políticas agrícolas, mas, também, em assuntos relacionados à questão agrária. A UDR, neste sentido, trouxe como elemento chave de seu surgimento a defesa de interesses relacionados à propriedade fundiária (LEAL, 2002).

A UDR, adepta dos princípios da livre iniciativa e propriedade privada (LEAL, 2002), foi criada mediante a insatisfação de segmentos envolvendo empresários pecuaristas e médios proprietários modernizados e integrados às cadeias produtivas e complexos agroindustriais, tendo sua formação associada prioritariamente ao combate à reforma agrária, radicalizando esta luta e confrontando diretamente os trabalhadores em luta pela terra (MST). Apesar de um perfil associado ao capitalismo, procurou também disputar a atração de pequenos produtores integrados com movimentos e sindicados rurais.

No pós-ditatura, no lugar das desapropriações para fins de assentamento de trabalhadores sem-terra, a estratégia passou a ser a de compra e venda de terras, movimento distante das reivindicações das camadas populares (GALVÃO, 2020).

Durante a elaboração da Constituição, entidades como a CNA, a UDR e a OCB atuaram organizadas em uma frente ampla da agropecuária brasileira no sentido de articularem políticas agrícolas envolvendo a proteção da propriedade rural. Neste contexto, importa ressaltar o apoio a candidaturas com vistas à formação de uma bancada de parlamentares comprometidos com as suas propostas, ao mesmo tempo em que se estabeleciam alianças com parlamentares identificados com os interesses destas organizações (LEAL, 2002). Estas ações culminaram, ainda no processo envolvendo a nova Carta Magna, com a criação da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA) e, no que compete ao cooperativismo e à atuação da OCB, da criação da Frente Parlamentar do Cooperativismo (FRENCOOP).

O esforço demiúrgico consagrado na janela de oportunidades representada pela Assembleia Nacional Constituinte em meio a um contexto de crescente mobilização política e social do cooperativismo da pequena produção familiar, da luta pela terra e dos novos movimentos sociais surgidos a partir do final da década de 1970 no Brasil também encontrou uma reação coordenada das associações patronais do mundo agrário dentro do próprio processo constituinte: não apenas a UDR, a CNA e a OCB se constituíram em importantes organizações lobistas no âmbito das comissões que trataram da questão agrária no país, mas duas de suas principais lideranças – Ronaldo Caiado, pela UDR, e Roberto Rodrigues, pela OCB – converteram-se em destinatários privilegiados das agendas de parcelas expressivas dos(as) deputados(as) constituintes, fortalecendo o campo político que já naquele momento era denominado como Centrão (COSTA, 2012), que se converteria em freio a qualquer mudança de maior envergadura na estrutura agrária brasileira (NOBRE, 2013).

Referências

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  1. É fundamental frisar que a extensão do eleitorado não representou a realização do direito político, na medida em que o simulacro de participação política observado durante a ditadura carecia de instrumentos e direitos correlatos básicos à realização da cidadania política.