Nacional-desenvolvimentismo, corporativismo e as origens do Sistema OCB

Ivan Silva, Luci Maria Teston e Valdemiro Rocha

Introdução

Este boletim é o segundo de uma série que procura discutir o sistema cooperativista desde as matrizes conceituais e históricas até o cenário recente e suas implicações para o campo da política. No primeiro boletim buscamos realizar uma breve e sucinta genealogia do conceito de cooperativismo, desde seu surgimento, em meio às lutas sociais e políticas de finais do século XVIII e início do século XIX até a sua acepção contemporânea, buscando situá-lo política e ideologicamente ao longo desta trajetória.

Nesta edição serão examinadas as políticas de bem-estar social no Brasil e sua relação com o nascimento do Sistema OCB. Antes, porém, torna-se relevante situar este Sistema, formado por três instituições com características distintas: a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) e a Confederação Nacional das Cooperativas (CNCoop).

A primeira entidade a ser criada no âmbito do Sistema – em 1969 – foi a OCB, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos e com a missão de “promover um ambiente favorável para o desenvolvimento das cooperativas brasileiras, por meio da representação político-institucional”[1]. Cada Estado possui uma organização efetivada como associação, mas que também recebe atribuições legais para atuar como sindicato patronal das cooperativas em cada Estado.

A segunda instituição integrante do Sistema OCB que surgiu foi o Sescoop, criado em 1998 com a missão de “promover a cultura cooperativista e o aperfeiçoamento da governança e da gestão para o desenvolvimento das cooperativas brasileiras”[2]. É um ente de natureza jurídica de direito privado que compõem a categoria das entidades paraestatais, visto atuar em cooperação com o Estado desempenhando atividades de interesse público. Embora seja uma organização privada, é mantida com recursos repassados pelo governo, o qual fiscaliza sua aplicação. A natureza dúbia das organizações que compõem o chamando Sistema S permanece aos olhos do público leigo, pois sendo privadas, atuam com finalidades públicas. Daí a expressão paraestatal.

A última entidade a surgir na composição da tríade do Sistema OCB é a CNCoop, uma confederação sindical patronal de terceiro grau, constituída por sindicatos estaduais agrupados em federações dos sindicatos e organizações nas diferentes regiões do país. Criada em 2010, é uma pessoa jurídica de direito privado, como a missão de “defender o cooperativismo e os interesses da categoria econômica das cooperativas brasileiras”[3]

O argumento a ser desenvolvido neste boletim consiste em investigar as bases históricas, econômicas e sociais da estruturação e do fortalecimento do cooperativismo no Brasil, que culminaram com a criação do Sistema OCB. Para entender as primeiras regulamentações brasileiras acerca do cooperativismo parte-se do contexto das economias políticas nacionais, com destaque para o modelo na América Latina e no Brasil, em especial ao Estado varguista e a legislação que regulamenta a relação trabalhista no Brasil, além dos avanços oriundos da experiência democrática.

Periferia, subdesenvolvimento e nacional-desenvolvimentismo

Os países da América Latina contam com algumas especificidades quanto ao seu processo de desenvolvimento: são, em primeiro lugar, países de herança colonial – fator determinante para a longa permanência de estruturas pré-modernas, seja no âmbito econômico, político ou social – e, portanto, surgem antes como empresas do que como nações, para fazermos referência ao clássico texto de Caio Prado Júnior[4]. A segunda especificidade diz respeito à não espontaneidade de seu desenvolvimento econômico (Cepêda, 2010; Werneck Vianna, 1991): a despeito de intentos industrializantes autônomos (em diferentes níveis e variações), a construção da modernidade latino-americana se realiza por intermédio de uma vontade política materializada na figura do Estado. O Estado, na América Latina, ao invés de ser o resultado, revela-se como uma realidade ex ante do processo social.

Para entender o desenvolvimento dos países da América Latina é importante examinar as contribuições de Hall e Soskice (2004) quanto às variedades de capitalismo no contexto das economias nacionais. Não obstante o modelo hegemônico de organização da sociedade seja o capitalista, deve-se considerar as características distintas de cada país, derivadas de diferentes histórias, culturas e realidades institucionais. Isto, para os autores, permite identificar a existência de diferenças nos modelos de capitalismo e nos sistemas de proteção ao trabalho e bem-estar social nas economias políticas nacionais: as “economias de mercado liberais” e as “economias de mercado coordenadas”.

Em “economias de mercado liberal”, as empresas coordenam suas atividades por meio de hierarquias e de arranjos de mercado competitivos. Nesta variedade, as relações de mercado são caracterizadas pela troca de bens ou serviços em termos impessoais em um contexto de competição e contratação formal. O mercado é o principal coordenador das relações entre as empresas e também destas com o trabalho e as finanças. Além disso, a forma de comando é majoritariamente vertical e o desempenho é medido pelo lucro em curto prazo (Hall e Soskice, 2004).

Nas “economias de mercado coordenadas”, as empresas dependem mais fortemente de relações não mercadológicas para coordenar seus empreendimentos com outros atores e construir suas competências centrais. Em contraste com as economias de mercado liberal, onde os resultados de equilíbrio do comportamento das empresas são geralmente dados pelas condições de oferta e demanda em mercados competitivos, os equilíbrios nos quais as empresas se coordenam nas economias de mercado coordenadas são mais frequentemente o resultado de interações estratégicas entre empresas e outros atores (Hall e Soskice, 2004). Estes modelos de políticas públicas são importantes no sentido de observar o processo de desenvolvimento da América Latina e situá-lo no contexto do surgimento do Sistema OCB e de seu braço social, o Sescoop.

Em face de sua condição colonial, a economia dos países latino-americanos se configura enquanto um processo estratégico no sistema de produção e circulação internacional do capital, servindo como fornecedora de matérias-primas e produtos primários às metrópoles, explorados em regime de monocultura e latifúndio. Mesmo com os processos de independência, a “vocação primário-exportadora” – apoiada na Teoria das Vantagens Comparativas[5] – continua sendo o mote, e dura de meados do século XIX até a crise de 1929, embora tenha demorado até o Manifesto dos Periféricos (1949) de Raúl Prebisch para que seu fim se configurasse como hegemonia no pensamento econômico (Hirschman, 1968).

A crise de 1929 representou um duro golpe no modelo primário-exportador a partir de uma queda vertiginosa do preço das exportações (Gugliano, 2003). A Depressão da década de 1930 representou um tremendo revés não apenas ao modelo primário-exportador, mas também ao seu sustentáculo teórico e ideológico: o liberalismo latino-americano, de modo que mesmo os países cuja tradição liberal era mais avançada (como a Argentina) passaram a caminhar no sentido da centralização econômica. A crise enfraqueceu em grande medida a posição material e a legitimação ideológica das elites tradicionais (Whitehead, 2009), transferindo o eixo dinâmico da organização política e econômica para o Estado.

Se a teoria do subdesenvolvimento (Furtado, 2000) se constitui como o diagnóstico da condição do atraso na periferia do capitalismo, a outra face deste processo é a configuração do chamado modelo nacional-desenvolvimentista – síntese política conformada a partir de uma brecha histórica, em que o sujeito político fundamental na condução do processo de desenvolvimento passa a ser o Estado, extraindo-se como síntese seis argumentos principais:

  1. Compreensão da economia como um sistema nacional integrado;
  2. Crítica ao primado do mercado e seu automatismo na configuração de um processo de desenvolvimento na periferia – afastando-se dos pressupostos da matriz de pensamento liberal, e apostando na confluência entre economia e política;
  3. Papel estratégico do setor industrial na configuração de uma força motriz desencadeadora de dinâmica econômica;
  4. Apoio na tese da dicotomia entre interesses internos e externos, fundamentando políticas de protecionismo;
  5. Rejeição consciente da Teoria das Vantagens Comparativas, fundamento para a noção de especialização nacional dentro do diapasão liberal, e busca pela constituição de um sistema diversificado de economia nacional, apoiado no setor industrial;
  6. Protagonismo do Estado enquanto agente diretivo, apoiado na ideia de nação como síntese do pacto social[6].

Dois fenômenos se vincularam durante o período entre as duas guerras mundiais na América Latina: por um lado, o avanço do intervencionismo econômico do Estado, assumindo para si tarefas históricas e estratégicas de uma burguesia nacional muito incipiente e frágil; e por outro, a politização dos conflitos sociais intersetoriais e interclasses por intermédio da incorporação política corporativa da classe trabalhadora urbana ao pacto sociopolítico nacional. A vinculação entre essas duas esferas, que se traduziu na politização do conflito distributivo via política econômica se configura tanto uma novidade desse período como o traço distintivo do principal agente político dessa conjuntura: o populismo (Cavarozzi, 1999).

Junto ao cardenismo, no México, o varguismo e o peronismo constituem as maiores expressões do fenômeno do populismo latino-americano: em primeiro lugar, nesses casos, os movimentos de massas e os partidos representantes de uma coligação entre diversas classes sociais caminharam no sentido da configuração de governos populistas; em segundo lugar, tais governos patrocinaram alterações significativas das estruturas políticas, promovendo um rearranjo da relação entre Estado e sociedade; e, em terceiro lugar, assumiram políticas econômicas no sentido de induzir o processo de industrialização via estratégia ISI (Ianni, 1991). O populismo possui características específicas e profundamente relacionadas com a herança colonial e o legado da inserção subalterna e dependente de suas economias no sistema capitalista internacional. Parte de sua peculiaridade deriva do fato de que, com a crise do sistema oligárquico, nenhuma classe social assume as condições de configurar uma nova hegemonia, de modo que, neste vazio político e ideológico, o populismo surge como forma de dominação, colocando-se como intermediário entre as classes dominantes e as massas (Weffort, 1966):

Sob vários aspectos, o populismo latino-americano parece corresponder a uma etapa específica na evolução das contradições entre a sociedade nacional e a economia dependente. A natureza do governo populista, que é onde se exprime mais concretamente o caráter do populismo) está na busca de uma nova combinação entre as tendências do sistema social e as determinações da dependência econômica. Nesse contexto, as massas assalariadas aparecem como um elemento político dinâmico e criador. As massas populistas (por suas ações, tanto quanto na forma pela qual são manipuladas) possibilitam a reelaboração da estrutura e atribuições do Estado (Ianni, 1991, p. 9)

O processo revolucionário de 1930 marca um ponto de inflexão na história política e social brasileira, pois abriu a perspectiva de que uma ampla frente ideológica pudesse assumir a condição de nova maioria política no Brasil, dissociada da aristocracia do café com leite – pelo menos em parte (que em grande medida determinou a agenda política durante a República Velha[7]). Apesar de diferir das revoluções burguesas ocorridas nos países centrais, o movimento revolucionário de 1930, associado às condições impostas pela crise de 1929, contribuiu de modo decisivo no pontapé inicial para a transição para uma sociedade urbano-industrial (Pochmann, 2010), a partir da concepção do Estado nacional como núcleo organizador da sociedade e alavanca da construção de um capitalismo industrial no país (Sallum Jr., 1994). A crise do final dos anos 1920 colocou em xeque o poder e o prestígio das elites tradicionais vinculadas à tradição oligárquica da República Brasileira, empoderando as correntes políticas que se rebelavam contra estas mesmas elites e seu sustentáculo ideológico: o liberalismo.

Corporativismo, cooperativismo e cidadania regulada

Pari passu à industrialização do país, o Estado varguista buscou introduzir a cidadania (embora tutelada pela estrutura corporativista) por intermédio da incorporação do operariado urbano à condição de portador de direitos. Até 1930 a questão trabalhista (sobretudo a operária) havia sido processada à margem do sistema político, basicamente variando quanto à maior eficácia da repressão das demandas ligadas ao mundo do trabalho (Cavarozzi, 1977). É nesse momento em que se elabora a legislação que regulamenta a relação trabalhista no Brasil, apoiada ideologicamente no discurso da valorização simbólica do trabalhador enquanto figura estratégica no imaginário nacional (Gomes, 1999), que culmina com o estabelecimento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, e é também nesse período em que o Brasil tem sua primeira regulamentação nacional acerca do cooperativismo: o Decreto Federal 22.239, que deu às cooperativas uma existência formal enquanto sociedades de pessoas (não de capital), concedendo a elas isenção de tributos federais (Dowbor da Silva, 2006).

O Brasil teve, ainda, de lidar com outro fator fundamental na esteira das transformações sociais e econômicas que se acentuam a partir da Revolução de 1930: a incorporação das massas populares ao jogo político, já que a urbanização e o crescimento do proletariado introduzem na cena nacional um novo (e crescente) ator político (Weffort, 1978). O populismo inaugurado pelo varguismo (e que se estende pelo trabalhismo enquanto seu herdeiro ideológico e institucional durante as décadas de 1950 e 1960) se assentava em dois pilares: uma coalizão pluriclassista, por um lado, e, por outro, na incorporação tutelada do proletariado urbano ao sistema político e social por intermédio do que Wanderley Guilherme dos Santos definiu como cidadania regulada.

O ano de 1930 representa um ponto de inflexão não apenas na trajetória econômica do país, mas também no processo de construção da cidadania, em especial com relação aos direitos sociais, negligenciados tanto durante o Império como durante a Primeira República. Carvalho (2014) define este momento como o início da marcha acelerada (1930-1964) na trajetória da constituição da cidadania no Brasil. O processo que se inicia com a criação do Ministério do Trabalho em 1930 e culmina com a adoção da CLT em 1943 inicia um impulso a partir do qual a legislação social não parou de aumentar seu escopo. Neste sentido, vale dizer que os direitos sociais, no Brasil, possuem precedência aos demais, em especial os direitos políticos, que verificam uma evolução um pouco mais complexa: entre 1930 e 1945 (data do golpe de destitui Vargas da presidência) o país experimentou um governo minimamente constitucional apenas entre 1934 e 1937, data do golpe que instaura o Estado Novo. E é apenas de 1946 em diante que o Brasil experimenta sua primeira experiência verdadeiramente democrática, a despeito dos problemas e das tensões sociais, políticas e institucionais. Os direitos civis progrediram lentamente, e estiveram presentes até mesmo na legislação de 1937, mas foram suprimidos em fases de fechamento do regime (Carvalho, 2014).

Sobre este aspecto, Boschi (1979) argumenta que as leis trabalhistas aprovadas entre 1930 a 1937 tiveram a participação intensa dos empresários da iniciativa privada em todas as fases de sua elaboração. Ao mesmo tempo em que o governo regulava e propunha a garantia de direitos dos trabalhadores e dos empregadores, houve a busca pelo controle dos sindicatos dentro de uma matriz corporativa.

Dentre os avanços em direitos sociais, cumpre função de destaque a adoção da carteira de trabalho, em 1932. O padrão de consolidação dos direitos sociais no Brasil após a Revolução de 1930 se estabeleceu dentro de um paradigma – fortemente influenciado pelo positivismo ortodoxo[8] – de inclusão das camadas populares sem conflito de classes por intermédio de um Estado não apenas mediador dos conflitos, mas também enquanto instrumento de tutela das próprias classes e segmentos sociais. Deste modo, os direitos sociais foram distribuídos com base numa estratificação ocupacional, tendo acesso aos direitos definidos por lei aquelas categorias profissionais reconhecidas pelo Estado (Santos, 1979; Kerbauy, 1980). A expansão dessa cidadania regulada[9], por sua vez, ocorre via reconhecimento legal de novas profissões, ou a ampliação do escopo de cobertura da proteção social pelo Estado, em troca de sua cooptação para o projeto de construção da nação capitaneado pelo projeto varguista. Assim, a carteira de trabalho se transforma no reconhecimento formal de um contrato, não apenas entre empregador e empregado, mas sobretudo entre o Estado e a cidadania regulada (Santos, 1979).

Com a democratização advinda da destituição de Vargas, em 1945, a experiência constitucional representou a retomada e o avanço dos direitos políticos e a garantia dos direitos civis, além da manutenção do padrão de legislação social construído no período anterior. No entanto, três exceções problematizam a primeira conformação democrática no Brasil: a continuidade da proibição do voto dos analfabetos (além dos soldados), a proibição do PCB em 1947, durante o governo Dutra, e a limitação do direito de greve, que deveria ser previamente autorizada pela Justiça do Trabalho. Há, também, outro grave fator de limitação do acesso à cidadania no tocante aos direitos sociais: o padrão brasileiro de cidadania regulada inaugurada em 1930 excluiu do pacto corporativo os trabalhadores rurais, de modo que o impulso modernizante não avançou sobre a estrutura fundiária, e a questão agrária (herança do período colonial) se manteve intocada durante todo o período (Santos, 1979).

Outro aspecto que marca a experiência democrática brasileira entre 1946 e 1964 é a crescente polarização da sociedade e do corpo político, e a politização do campo cumpre um papel central neste processo. A criação das Ligas Camponesas, em 1955, e a influência de seu principal líder, Francisco Julião, foram fundamentais para que em 1963 fosse aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural – primeira tentativa institucional de disciplinar e regulamentar as relações de trabalho no campo, estendendo aos trabalhadores rurais uma série de direitos que os seus congêneres urbanos vinham adquirindo desde a década de 1930. Em 1964 (durante o governo João Goulart), às vésperas do golpe militar, é fundada a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Carvalho, 2014). Pela primeira vez os trabalhadores do campo entravam na cena pública, demandando uma série de direitos (civis, políticos e sociais) e garantias que os retirasse do domínio completo por parte dos proprietários de terra, que ainda exerciam um poder praticamente intocado em seus domínios territoriais. Tal fenômeno foi encarado como muito mais ameaçador que a sindicalização urbana a partir dos anos 1920/1930, por dois motivos essenciais: em primeiro lugar, porque acontecia em um contexto de liberdade democrática e fora da tutela do Estado e, portanto, sem o instrumento “disciplinador”; e em segundo lugar, porque estava associado a um movimento nacional de esquerda, cuja principal pauta ameaçava de modo direto a estrutura de poder no campo: a reforma agrária (Carvalho, 2014).

Também no campo do cooperativismo os avanços oriundos da experiência democrática se fizeram sentir, sobretudo com a criação da União Nacional das Associações de Cooperativas (UNASCO), em 1956, e a criação da Associação Brasileira de Cooperativas (ABCOOP), em 1960 – além de associações estaduais como as paulistas UCESP e ACAPESP (Dowbor da Silva, 2006).

O golpe de 1964 e a ditadura militar que se estende entre 1964 e 1985 representam um claro revés para a trajetória dos direitos civis e políticos, cerceados pela violência institucional enquanto prática de um Estado de exceção, que tem no Ato Institucional nº5 (1968) seu principal marco repressivo, suspendendo garantias fundamentais, inclusive o direito à vida. O fundamento do projeto desenvolvimentista também sofre uma guinada, e a restrição dos ganhos do salário operava enquanto – segundo a ideia dominante de então – um fenômeno multiplicador da dinâmica econômica, na medida em que criava um ambiente mais propício à reprodução ampliada do capital, estruturado na metáfora de que antes de dividir o bolo era necessário fazê-lo crescer. Carvalho (2014) divide a ditadura em três fases: 1964-1968, mais liberal, marcada por uma intensa repressão inicial seguida de abrandamento, queda no poder de compra do salário mínimo, combate à inflação e modesto crescimento econômico; 1968-1974, período de repressão brutal (iniciada pela introdução do AI-5) e elevado crescimento econômico aliado à manutenção do congelamento aos salários; 1974-1985, período marcado pela gradual queda da repressão e pela crise econômica, aprofundada e acelerada pelos choques do petróleo e a crise da dívida.

O período entre 1946 e 1964 é marcado, ainda, pela consolidação do desenvolvimentismo como modus operandi do Estado brasileiro no tocante à gestão política, econômica e social, cuja base de sustentação teórica foram os chamados desenvolvimentistas-nacionalistas (Bielschowsky, 2004), que possuíam como seu maior expoente o próprio Celso Furtado. Vários projetos de corte desenvolvimentista foram lançados com a iniciativa estatal: o Plano SALTE durante o governo Dutra; o Plano de Metas durante o governo de Juscelino Kubitschek (durante o qual o Brasil aumentou expressivamente o grau de internacionalização do setor produtivo); e o Plano Trienal durante o governo de João Goulart. Todos eles buscavam, por intermédio da ação estatal, coordenar o desenvolvimento nacional calcado no fomento à industrialização com base no dinamismo interno.

A ditadura militar levou adiante a revolução burguesa no Brasil calcada num projeto de modernização conservadora, e propiciou uma transformação estrutural da economia paralela à migração do campo para a cidade. Em 1968, os bens primários eram responsáveis por 80% do total das exportações brasileiras e os bens industriais por apenas 20%; em 1980, a participação dos bens primários no montante da exportação brasileira caiu para 42%, enquanto os bens industriais passaram a ser responsáveis por 56,5% do total (Santos, 1986).

O Estado pós-64, calcado na aliança estratégica empresariado-classe média, cria uma estrutura completamente diversa. Os grupos sociais não lutam mais por controle do Estado, mas por intermédio deste. Com o fortalecimento de um poder burocrático em oposição à sociedade civil e seus mecanismos clássicos de luta pelo poder (os partidos), os vários setores do Estado passam a ser facções em luta política, cada qual com interesses sociais distintos. Setores empresariais, ou da classe média, localizados nas empresas privadas, ou estatais, podem se aliar a setores da tecnocracia estatal, formando assim um “anel burocrático” de pressão (Cardoso, 1975).

É nesse contexto que o sistema cooperativo brasileiro assume sua versão mais madura e, em grande medida, ainda vigente: em 1969, enquanto um dos resultados do IV Congresso Brasileiro de Cooperativismo, é criada a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), no intuito de organizar e coordenar, nacionalmente, as respectivas organizações estaduais e distrital – estrutura formalizada e normatizada com a promulgação da Lei nº 5.764, de 1971, conforme se verá adiante. A nova legislação reforçou o papel da OCB enquanto representante nacional exclusiva do setor, vinculada institucionalmente ao INCRA, a quem caberia sua fiscalização e controle (Dowbor da Silva, 2006).

A criação e consolidação do Sistema OCB

Até 1930 o cooperativismo no Brasil caminhou muito lentamente. A crise econômica mundial estimulou a emergência de cooperativas (especialmente as agrícolas no sul do país) e levou o governo ao interesse pelo cooperativismo por considerá-lo como um instrumento de política agrícola. A partir de 1932, com a implantação do Decreto n. 22.239 do governo Vargas, é regulamentada a organização e o funcionamento das cooperativas. A partir de 1945, o governo passou a oferecer incentivos materiais e fiscais às cooperativas culminando, em 1951, na criação do Banco Nacional de Crédito Cooperativo (BNCC), extinto no governo Collor. A partir de 1966, o cooperativismo perde incentivos fiscais e liberdades já conquistadas, levando ao fechamento de muitas cooperativas (Schneider, 1982).

Em 1969, como resultado de uma forte articulação coordenada pelo Ministro da Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima, e pelo Secretário da Agricultura do Estado de São Paulo, Antônio José Rodrigues Filho, é criada a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). A OCB origina-se a partir da fusão, em dezembro de 1969, de duas representações nacionais do cooperativismo, a Aliança Brasileira de Cooperativas (ABCOP) e a União Nacional das Associações de Cooperativas (UNASCO). Para Silva (2006), eram apresentados os primeiros sinais de que a nova ordem a ser instituída ao cooperativismo brasileiro estava estruturada nas bases historicamente vinculadas às classes dominantes que, naquela conjuntura, expressavam seu poder por meio do Estado ditatorial.

O objetivo de tornar a OCB o único veículo de comunicação entre o Estado e o movimento cooperativista foi alcançado com a sanção da Lei n. 5.764/71, pelo presidente Médici. Por meio dos artigos 105 e 107 da referida Lei, a OCB foi considerada a representante do sistema cooperativista nacional. Neste período, a OCB exercia forte influência e tinha a capacidade de ingerência diferenciada na condução da macropolítica do cooperativismo nacional, pois detinha três assentos no Conselho Nacional de Cooperativismo (CNC). Ou seja, a OCB, na prática, estava imbuída de maior força política individual do que os Ministérios relacionados para compor o CNC.

Nos estados, a OCB atuou a partir da implantação das organizações estaduais as quais passaram a ser os agentes políticos e representativos, defendendo os interesses do movimento em seus estados. Estruturadas nos 26 estados da Federação e no Distrito Federal, coube às organizações estaduais a orientação e a integração das cooperativas, promovendo treinamento, capacitação e tornando possível a profissionalização da gestão e a autogestão cooperativa. Estas cooperativas são registradas de forma oficial na unidade nacional da Organização, situada em Brasília.

A Lei n. 5.764/71 permitiu que a OCB atuasse, agora formalmente, como instrumento político com capacidade de articular os interesses das classes economicamente dominantes e de desarticular aqueles grupos que apresentassem alguma oposição (Silva, 2006). Esta função possibilitou uma penetração nacional intensa, tendo em vista a reprodução de sua estrutura em todos os estados da Federação e no Distrito Federal. Nas décadas de 1970 e 1980 a OCB consolida-se e constitui-se em uma estrutura capaz de readequar-se às transformações decorrentes da derrocada do modelo de Estado ditatorial.

Os interesses do sistema OCB foram garantidos por meio da atuação via relações institucionais e governamentais junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com destaque para a Frente Parlamentar do Cooperativismo (Frencoop) no Congresso Nacional, atuação que pode ser observada no inciso XVIII do artigo 5º da Constituição Federal, o qual assegura a liberdade de criação das cooperativas e veda a interferência estatal em seu funcionamento. Desta forma, o sistema cooperativista instituído na década de 1970 foi remodelado para atender as atuais necessidades da economia de mercado que passariam, necessariamente, pela garantia de sua autonomia perante o Estado.

Em 1998 o cooperativismo agropecuário brasileiro enfrentava um período de dificuldades. Sucessivos planos econômicos aumentaram as dívidas do setor, enquanto os preços agrícolas ficaram congelados ou desabavam. Com pouca ou nenhuma rentabilidade, as cooperativas perdiam capacidade de investimento e, por consequência, tornavam-se menos competitivas em um mercado fortemente influenciado pela globalização. O movimento cooperativista estava mobilizado em torno de discussões para a renegociação de dívidas e a capitalização das cooperativas.

Nasce, então, o Programa de Revitalização das Cooperativas de Produção Agropecuária (Recoop). Nas palavras do vice-presidente da OCB à época, João Paulo Koslovski, o Recoop surge “graças a uma atuação sistemática e disciplinada do cooperativismo brasileiro. Foram realizadas mais de 50 reuniões, nas quais, aprofundados estudos e levantamentos técnicos eram apresentados e discutidos com dirigentes das cooperativas, ministros e representantes do governo e, também, parlamentares”[10].

Foi nesse contexto de debates e negociações que tomou forma a proposta de criação do Recoop e também do Sescoop para o setor cooperativista. Lideranças cooperativistas entendiam que os recursos arrecadados por meio de contribuição mensal compulsória pelas cooperativas e destinados ao Senai, Sesi, Senac, Sesc, Senat, Sest e Senar não eram revertidos, de forma satisfatória, em benefícios para as cooperativas contribuintes.

No ponto de vista governamental, a ideia do Sescoop se fortalece a partir de dois entendimentos. O primeiro compreendia a realização do monitoramento e do acompanhamento das ações de governo junto às cooperativas. O outro tratava da promoção da qualificação dos cooperados e trabalhadores em cooperativas. Assim foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo com a finalidade principal de conceber um monitoramento das cooperativas que obtivessem recursos por meio do Recoop.

O Sescoop surge mediante a edição da Medida Provisória n. 1.715, de 03 de setembro de 1998, e do Decreto n. 3.017, de 06 de abril de 1999 – o qual aprovou seu regimento -, ambos no governo de Fernando Henrique Cardoso. Apresentou como características uma personalidade jurídica de direito privado, composta por entes vinculados ao sistema sindical, sem prejuízo de fiscalização pelo Tribunal de Contas da União. Seu objetivo é organizar, administrar e executar, em todo território nacional, o ensino de formação profissional, desenvolvimento e promoção social do trabalhador em cooperativas e dos cooperados (artigo 8º).

De acordo com a Medida Provisória n. 2.168-40/2001, o objetivo do Sescoop é organizar, administrar e executar, em todo o território nacional, o ensino de formação profissional, monitoramento e desenvolvimento de cooperativas, bem como promoção social do trabalhador em cooperativa e dos cooperados, sendo que sua organização e funcionamento devem constar em regimento, aprovado em ato do Poder Executivo.

Seu advento, concebido inicialmente para atuar promovendo cursos de formação e gestão profissional para cooperados, ofertar treinamentos para a comunidade e divulgar noções e os princípios do cooperativismo, inaugurou a oportunidade para trabalhadores em cooperativas buscarem o desenvolvimento social e profissional. Criado para ser um instrumento de modernização e melhoria empresarial das sociedades cooperativas, o Sescoop buscou prestar serviços no desenvolvimento global do sistema, favorecendo a profissionalização da gestão por meio da execução de programas de educação, formação, capacitação e reciclagem de empregados, dirigentes de cooperativas e cooperados.

Considerações finais

Desde o início da história do capitalismo, as relações entre Estado e economia oscilam entre dois extremos, ambos favoráveis ao modus operandi do sistema econômico. Em um extremo, o Estado representa a ordem civil geral e intervém o menos possível na economia, ao delegar aos agentes a responsabilidade da regulação econômica. Neste caso, a ordem econômica é completamente delegada ao mecanismo de mercado e surge espontaneamente dos interesses dos agentes.

Na outra ponta, o Estado desempenha o papel de agente econômico que além de garantir a ordem social, também provê o sistema econômico de dinamismo, controle e estímulos para que o capital e a riqueza possam seguir seu processo de acumulação. Aqui, mercado e Estado se fundem numa relação complexa e a ordem econômica emerge como regras que diferentes grupos de agentes impõem a si mesmos e aos outros por meio do Estado, ao controlar o seu aparelho. Neste caso, o Estado é usado como um complemento do mercado. Entretanto, nos dois extremos, o Estado desempenha um papel importante na dinâmica econômica e na acumulação de capital.

Neste boletim buscou-se refletir sobre como o modelo de capitalismo adotado no Brasil influenciou de forma decisiva na criação, implantação e estruturação dos Serviços Sociais Autônomos como os conhecemos hoje e proporcionou o surgimento do Sistema OCB, o qual, a partir do Sescoop, é responsável pela organização, administração e execução do ensino de formação profissional, promoção social do trabalhador em cooperativas e dos cooperados, bem como na operacionalização do monitoramento e desenvolvimento das cooperativas.

Referências

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento Econômico Brasileiro: O Ciclo Ideológico do Desenvolvimento. São Paulo: Contraponto Editora, 2004.

BOSCHI, Renato. Elites industriais e democracia: hegemonia burguesa e mudança política no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1975.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil – O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

CAVAROZZI, Marcelo. Modelos de Desarrollo y Participación Política en América Latina: Legados y Paradojas. Estudios Sociales, n. 16, 1999.

CAVAROZZI, Marcelo. Populismos y “Partidos de clase media” (Notas comparativas). Revista Mexicana de Sociología, vol. 39, n. 1, 1977.

CEPÊDA, Vera Alves. Capital, Trabalho e Intelligentsia – Modernização e Desenvolvimento no Pensamento de Celso Furtado. Idéias, 2010.

CEPÊDA, Vera Alves. Inclusão, democracia e novo-desenvolvimentismo – um balanço histórico. Estudos Avançados, 26, 2012.

FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2000.

GOMES, Angela de Castro. Ideologia e trabalho no Estado Novo, in Dulce Pandolfi (org.), Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999.

GUGLIANO, Alfredo Alejandro. Modernización, Desarrollismo y Estado: algunos elementos del mundo antes del surgimiento de la globalización. Sociedade em Debate, vol. 9, n. 3, 2003.

HALL, Peter A.; SOSKICE, David (Ed.). Varieties of Capitalism: The Institutional Foundations of Comparative Advantage. Oxford University Press, 2004.

HIRSCHMAN, Albert. The political economy of import-substituting industrialization in Latin America. The Quarterly Journal of Economics, vol. 82, no. 1, 1968.

IANNI, Octavio. A Formação do Estado Populista na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1991.

KERBAUY, Maria Teresa M. Resenha Cidadania e Justiça. Perspectivas, n. 3, 1980.

POCHMANN, Marcio. Desenvolvimento e Perspectivas Novas Para o Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

PRADO JR, Caio. A Revolução Brasileira. A Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SALLUM JR., Brasílio. Transição Política e Crise de Estado. Revista Lua Nova n. 32, 1994.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Campos, 1979.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Transição em Resumo do Passado Recente ao Futuro Imediato. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 1, 1986.

SCHNEIDER, José Odelso. O panorama mundial, nacional e estadual do cooperativismo. Perspectiva Econômica. São Leopoldo, v. 12, n. 38, 1982.

SILVA, Eduardo Faria. A Organização das Cooperativas Brasileiras e a Negação do Direito Fundamental à Livre Associação. Dissertação em Direito. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006

WEFFORT, Francisco. Estado e Massas no Brasil. Revista Civilização Brasileira, n. 7, 1966.

WEFFORT, Francisco. O Populismo na Política Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.

WERNECK VIANNA, Maria Lúcia Teixeira. Notas sobre política social. Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 1, n. 1, 1991.

WHITEHEAD, Laurence. A organização do Estado na América Latina após 1930. In Leslie Bethell (org.), História da América Latina. São Paulo: Edusp, 2009. Vol. VII.

  1. https://somoscooperativismo.coop.br/institucional/ocb
  2. https://somoscooperativismo.coop.br/institucional/sescoop
  3. https://somoscooperativismo.coop.br/institucional/cncoop
  4. Ver Prado Júnior (2014).
  5. Segundo tal teoria, formulada por David Ricardo, para que um país alcance a utilização ótima de seus fatores de produção, este deverá produzir de preferência aquelas mercadorias cuja elaboração requer de forma mais intensa fatores que são mais abundantes.
  6. Conforme análise de Cepêda (2012). ↑
  7. A influência das oligarquias cafeeiras de São Paulo era tamanha que o governo reúne em 1906, no Convênio de Taubaté, com grandes produtores para acertar a compra e queima do excedente, de modo a garantir a rentabilidade da economia cafeeira. ↑
  8. O positivismo comtiano exerce uma influência forte nas tentativas de extensão de direitos sociais no Brasil desde a instauração da República, em 1889. Ver Carvalho (2014). ↑
  9. Ver Santos (1979). ↑
  10. Depoimento extraído da revista Paraná Cooperativo, ano 5, n. 51, Ago. 2009. ↑