Cooperativismo: um modelo de organização social no contexto do capitalismo contemporâneo

Ivan Silva, Luci Maria Teston e Valdemiro Rocha

Introdução

Este boletim é o primeiro de uma série que busca discutir o sistema cooperativista desde as matrizes conceituais e históricas até o cenário recente e suas implicações para o campo da política. Neste boletim o objetivo fundamental é realizar uma breve e sucinta genealogia do conceito de cooperativismo, desde seu surgimento, em meio às lutas sociais e políticas de finais do século XVIII e início do século XIX – fortemente influenciado tanto pelos intelectuais vinculados ao campo do socialismo utópico, como do próprio anarquismo e diversos matizes do socialismo cristão (que resgatava o comunitarismo presente no cristianismo primitivo) – até a sua acepção contemporânea, buscando situá-lo política e ideologicamente ao longo desta trajetória.

O escrutínio do conceito está concentrado em um duplo terreno: sua gênese social e sua gênese semântica, a partir da perspectiva koselleckiana da indissociabilidade entre a história social e a história dos conceitos, ou seja, da compreensão de que sociedade e linguagem são “precondições meta-históricas sem as quais nem a história [Geschichte] e nem a historiografia [Historie] são concebíveis” (Koselleck, 2020, p. 19).

O argumento central aqui desenvolvido consiste em verificar se o conceito semântico, ideológico e político de cooperativismo se mantém tal qual sua origem – representada mais fortemente pelos princípios dos pioneiros de Rochdale – ou se houve algum deslocamento do conceito, considerando como hipótese a captura e a ressignificação no sentido de sua conversão em forma social do capitalismo.

É preciso, todavia, fazer uma ressalva: a despeito das tentativas de captura do conceito – e, claro, de sua forma social concreta – no sentido de sua conversão ao capitalismo, o cooperativismo, enquanto modelo de organização social da produção, e a cooperativa, enquanto forma social imediata da produção, seguem sendo conceitos polissêmicos, razão pela qual os embates em torno de sua definição não podem ser apenas epistemológicos, mas, também, profundamente políticos e ideológicos.

Cooperativismo: origens teóricas e sociais do conceito

A primeira observação importante em torno do conceito de cooperativismo reside em seu caráter necessariamente histórico; ou seja, ainda que relações sociais cooperativas e colaborativas no âmbito da produção dos meios de reprodução social das organizações humanas estejam presentes ao longo de toda a história da humanidade, o cooperativismo é uma expressão social e política de um contexto historicamente delimitado: as contradições econômicas e sociais que organizam e estruturam a sociabilidade capitalista (em especial, após a Revolução Industrial). Esta compreensão a-histórica do cooperativismo está presente, todavia, em uma série de economistas, tanto liberais quanto não liberais (Costa, 2007).

Se, por um lado, o impulso à cooperação pode ser considerado um traço constitutivo da existência humana enquanto um ser social, por outro, a cooperação entre pessoas traz a perspectiva do interesse no alcance de resultados econômicos que não seriam possíveis de serem obtidos de forma individual.

O cooperativismo, por sua vez, é uma expressão política necessariamente moderna. E, aqui, é necessário fazer uma distinção conceitual importante entre cooperativa e cooperativismo: uma cooperativa é uma associação econômica organizada em bases igualitárias e horizontais (e pode, portanto, ser observada em vários momentos da história); o cooperativismo, entretanto, é uma doutrina política, social e econômica que visa, face às mazelas produzidas pelo individualismo liberal e pela espoliação da produção capitalista, reorganizar a sociedade a partir da elevação da cooperativa à condição de categoria ordenadora do mundo social.

Nesse sentido, afirma Pinho (1966, p. 8), o cooperativismo, fundamentalmente, objetiva a “correção do social pelo econômico através de associações de fim predominantemente econômico, ou seja, as cooperativas”. As cooperativas, no contexto apresentado pela autora, são sociedades organizadas em bases democráticas com o propósito de dotar seus membros tanto de bens e serviços quanto de programas educativos e sociais. São, portanto, “sociedade de pessoas e não de capital, sem interesse lucrativo e com fins econômico-sociais”, as quais atuam inspiradas em princípios como adesão livre, gestão democrática, participação econômica, desenvolvimento do ensino, neutralidade política, religiosa e ética e interesse pela comunidade.

As primeiras cooperativas modernas surgiram no final do século XVIII e início do século XIX, sobretudo na Inglaterra, na França e na Alemanha, após a Revolução Industrial, e são um resultado direto da agudização dos conflitos de classe a partir da atuação política da classe trabalhadora urbana nos países de capitalismo central, e da atuação política e teórica dos chamados socialistas utópicos, em especial, Robert Owen, Charles Fourier, Louis Blanc e Conde de Saint-Simon. Segundo Costa (2007, p. 60), as cooperativas mais antigas das quais se tem conhecimento são a cooperativa dos trabalhadores dos estaleiros Woolwinch e Chatham, na Inglaterra (1760); a cooperativa de consumo dos tecelões de Fenwich, na Escócia (1769); e a cooperativa de consumo inglesa, a Oldhan Co-operative Supply Company (1795). Após este período, relata o autor, houve um aumento considerável de cooperativas de consumo na Inglaterra, porém, “antes de 1844, todas as tentativas de se implementar cooperativas de consumo foram fracassadas, sobretudo em Brigton (1827), na Inglaterra, e em Guebwiller (1828) e Lyon (1835), na França”.

Embora as primeiras cooperativas tenham sido fundadas ainda no final do século XVIII, o marco mais importante nesse processo originário do cooperativismo foi a fundação da Rochdale Society Equitable Pioneers Limited – uma cooperativa criada por 28 operários (27 homens e uma mulher) do setor têxtil em 1844, em Rochdale, na Inglaterra. Os Pioneiros de Rochdale são considerados os fundadores da moderna distribuição cooperativa dos bens de consumo (Panzutti, 2002), na medida em que sua experiência não apenas inspirou um modelo específico de criação de cooperativas em todo o mundo, mas, sobretudo, porque os princípios que organizaram a sua fundação (adesão livre e voluntária, controle democrático pelos sócios, participação econômica dos sócios, autonomia e independência, educação, treinamento e informação, cooperação entre cooperativas e preocupação com a comunidade) são ainda, em grande medida, organizadores do movimento cooperativista contemporâneo (Silva Filho, 2001).

No livro “Os 25 Tecelões de Rochdale”, Holyoake (1933) relata a origem e os primeiros passos dos pioneiros da cooperativa. Traz as ideias de Robert Owen para destacar, à época de seus escritos, que os socialistas haviam ensinado os operários a raciocinar acerca de sua condição, ao alertar que tanto os patrões quanto os operários eram escravos da ordem comercial e industrial existente ao ponto de, se os operários assumissem a função de patrões, iriam agir da mesma forma que os industriais dos quais tanto criticavam. À vista disto, propunha que a reforma deveria ser realizada no conjunto do ambiente social.

Considerando que a contradição elementar da sociabilidade capitalista consiste na cisão entre produção socializada e apropriação privada dos frutos do progresso técnico (Marx, 2017) – com todas as consequências econômicas, sociais, ideológicas e psicológicas que advêm desta cisão –, a cooperativa, enquanto organização, e o cooperativismo, enquanto doutrina, apareciam como um contraponto ideológico, programático e teórico à precarização da vida representada por um modelo de sociedade governado pela mercadoria e ancorado na propriedade privada dos meios de produção (Antunes, 2008).

O caráter subversivo e revolucionário da cooperativa residia, fundamentalmente, no ataque ao próprio modelo de propriedade que organiza o modo de produção capitalista: o controle da propriedade por parte dos trabalhadores e das trabalhadoras representava, também, a possibilidade de controle do próprio processo produtivo, das relações de produção, e, por conseguinte, dos produtos derivados do trabalho social, resgatando, assim, a perspectiva do trabalho enquanto atividade vital e meio pelo qual os seres humanos se reconhecem como pertencentes a uma mesma comunidade: a espécie humana (Marx, 2017a). Para Dobrohoczki (2013), as cooperativas de trabalhadores não acumulariam o “trabalho excedentário”, considerando a teoria do valor-trabalho de Marx, deixando-as, neste contexto, imunes a acusações de exploração e alienação dos trabalhadores.

O caráter disruptivo e genético da cooperativa enquanto uma forma distinta da produção social é observado com entusiasmo por Marx em diversas obras, mas, sobretudo, em Crítica do Programa de Gotha e O Capital. Na seção “O papel do crédito na produção capitalista”, no Livro 3 de o Capital, Marx discorre a respeito do modo pelo qual as sociedades por ações representam uma alteração profunda no modo de produção capitalista, na exata medida em que alteram um aspecto fundacional do capitalismo, outrora organizado a partir da contradição entre a produção social e a apropriação nucleada no capital privado, que passa a assumir, então, a forma de capital social, ou seja, capital de indivíduos associados em oposição ao capital privado – processo que é descrito por Marx como a suprassunção – i.e., a superação dialética – do capital como propriedade privada dentro dos próprios limites da produção capitalista (ou seja, apresenta essa passagem não como superação real da contradição capitalista, mas como metamorfose), e um prenúncio (contraditório) da fase de transição para um novo modo de produção (Marx, 2017b).

No caso específico das cooperativas de trabalhadores(as), Marx identifica “a primeira ruptura do modelo anterior, apesar de que, em sua organização real, reproduzam e tenham de reproduzir, por toda parte, naturalmente, todos os defeitos do sistema existente” (Marx, 2017b, p. 498). Embora reproduzissem a lógica mercantil, as cooperativas operárias seriam a gênese de um novo modo de produção ancorado na produção social de livres produtores associados, gestada enquanto embrião de um mundo novo a partir das ferramentas e formas sociais de um mundo em declínio. Ainda neste sentido, afirma Marx que “as empresas capitalistas por ações devem ser consideradas, tanto quanto as fábricas cooperativas, formas de transição entre o modo de produção capitalista e o modo de produção associado, com a única diferença de que, num caso, o antagonismo é abolido negativamente, e no outro é abolido em sentido positivo” (Marx, 2017b, p. 599).

Não apenas o campo socialista – em sua vertente utópica ou marxista – dedicou profunda atenção ao cooperativismo enquanto novo tipo de organização social da produção. No esteio da consolidação das experiências cooperativas na Inglaterra, em meados do século XIX, também houve a proliferação de associações de trabalhadores(as) dedicadas ao livre debate e à troca de ideias a respeito de política, religião, economia e outros assuntos cotidianos (Cinelli e Arthmar, 2018), tais como a London Cooperative Society (LCS) – cooperativa de consumo de Londres, fundada em 1825 com apoio financeiro de Robert Owen.

A LCS foi, no ano de sua fundação, palco de um profícuo debate entre William Thompson (industrialista inglês fortemente influenciado pelo utilitarismo de Jeremy Bentham e pela visão das comunidades cooperativas de Robert Owen) e John Stuart Mill a respeito das vantagens ou desvantagens do sistema cooperativo em relação ao sistema competitivo (Cinelli e Arthmar, 2018).

A partir de sua adoção do utilitarismo benthamiano, ou seja, do imperativo de maximização da felicidade como raison d’être das organizações sociais, Thompson sustentava que a desigualdade seria, necessariamente, o fundamento principal da infelicidade humana, sobretudo porque a forma da organização produtiva industrial estaria assentada na fraude, na espoliação e no trabalho forçado (Thompson, 1824) e, portanto, uma reforma social deveria obedecer três leis naturais de distribuição – elaboração que Thompson constrói a partir da obra de Adam Smith (Cinelli e Arthmar, 2018): o trabalho deve ser sempre livre e voluntário; tudo o que for produzido pelo trabalho deve ser apropriado pelos seus respectivos produtores; e todas as trocas devem ser livres e voluntárias – situação que só poderia ser satisfeita mediante a construção de uma sociedade realmente cooperativa (Thompson, 1823).

Mill, por sua vez, ainda em sua juventude e fortemente influenciado pela Economia Política Clássica (em especial, Adam Smith e David Ricardo), não apenas rejeitou a assunção comum entre os reformadores sociais do início do século XIX de que o espírito da competição estava por trás dos males econômicos de seu tempo, mas, também, sustentou que a ausência de um incentivo adequado ao trabalho derivado da competição – que, invariavelmente, ocorreria num sistema cooperativo defendido por Thompson e por Owen – depreciaria a produtividade geral da sociedade e, por extensão, diminuiria a sua felicidade, além de representar um risco muito grande à liberdade individual, já que um sistema cooperativo dependeria da existência de um controle centralizado do processo produtivo (Mill, 1988).

Ainda que Mill tenha se colocado fortemente contra a sociedade cooperativa no debate de 1825, sua posição mudaria posteriormente (ainda que mantivesse sua firme convicção na defesa irrestrita da liberdade individual como fundamento da felicidade): em sua obra Chapters on Socialism, ao discutir os males derivados das fraudes comerciais e as iniquidades surgidas no seio da produção industrial, Mill sustenta que “a classe mais importante, contudo, dessas fraudes, à massa das pessoas, aquela que afeta o preço ou a qualidade dos artigos de consumo diário, pode ser em grande medida superada pelo estabelecimento das lojas cooperativas[1]” (Mill, 2009, p. 73). Ademais, Mill também defende, nesta obra, que o estabelecimento das cooperativas poderia servir como um meio de redução das hostilidades entre o empresariado e o conjunto de trabalhadores(as), funcionando, assim, como um importante mecanismo de coesão social (Mill, 2009).

Desafios e perspectivas do cooperativismo e da sociedade cooperativa

O cooperativismo tem se transformando em objeto de estudos em grande medida associado às discussões envolvendo alternativas diante das relações capitalistas de produção. Na perspectiva de Zeneratti (2020), há uma multiplicidade de cooperativismos os quais procuram encontrar sua identidade no contexto das amplas possibilidades permitidas pela proposta cooperativa.

Quanto às cooperativas, estas são organizações tidas como democráticas e também como parte integrante das estruturas de mercado[2]. Sendo empresas econômicas, mas com mandatos sociais, fazem parte dos circuitos do capitalismo, mas também resistem às suas formas dominantes. Têm a capacidade de negociar entre o mundo da vida e o sistema, contribuindo para a esfera pública em termos de ser um espaço democrático e um meio de empoderamento (Dobrohoczki, 2013). Ou seja, o sistema cooperativo só pode ser realizado no interior de um regime capitalista (Luxemburgo, 2002).

Apesar de seu caráter inicialmente anti-hegemônico e subversivo, o desenvolvimento do cooperativismo caudatário da experiência dos Pioneiros de Rochdale e da influência teórica do socialismo utópico passou a lidar com contradições e limites típicos de um modelo de organização social da produção que, embora confrontasse o modelo de propriedade capitalista, não podia (isoladamente) romper com a lógica da mercadoria. Para Costa (2007, p. 61), o triunfo da experiência enquanto modelo pendeu para gerar um movimento reformista e não revolucionário, ou seja, sendo definida como “uma alternativa dentro do sistema e não mais como uma alternativa ao sistema”. Como consequência, houve a separação do movimento cooperativo em relação ao movimento sindical, bem como a instituição de um movimento interclassista e a criação de cooperativas especializadas.

O processo de desenvolvimento das cooperativas passou a lidar, ainda, com um problema adicional derivado da complexificação das próprias cooperativas, paulatinamente convertidas em organizações sociais cada vez maiores e mais complexas. Ao associar-se a uma cooperativa, o associado se torna, a mesmo tempo, empresário e usuário, renunciando, em grande medida, parte de sua autonomia e de seu poder porquanto se une aos outros cooperados e se submete aos princípios da igualdade e da gestão democrática decorrentes dos regramentos que regem a sociedade cooperativa, em especial, seu Estatuto Social.

As limitações em termos de decisões pessoais no âmbito da cooperativa seriam compensadas por vantagens como redução de custos, economia de escala, ampliação do mercado e defesa de sua produção. O cooperado, neste contexto, estaria interessado em maior eficácia de sua atividade econômica ao buscar a ação cooperativa. A cooperativa seria percebida como uma técnica organizacional considerada eficaz no sentido de promover o desenvolvimento econômico. Este cooperado renunciaria a vontades individuais para adquirir a proteção coletiva, se submetendo ao Estatuto Social da cooperativa no qual são definidos os regramentos de sua atuação.

Por conseguinte, ao lado do cooperativismo inspirado nos Pioneiros de Rochdale avança um modelo que utiliza a cooperativa como técnica empresarial, diferentemente da inspiração doutrinária rochdalena (Pinho, 1982). Ao discutir a questão agrária sob o contexto do camponês e das cooperativas de produção, Kautsky (1980) ressalta que os cooperados, em algum momento, começam a empregar trabalhadores assalariados nas cooperativas, os quais não participam da propriedade dos meios de produção e seriam explorados pelos cooperados. Como consequência, a cooperativa, quando próspera, desenvolveria a tendência – no âmbito da sociedade moderna – de se tornar uma empresa capitalista.

Há uma característica inerente ao capitalismo – apontada tanto pelos liberais, em sua defesa, como no caso de Schumpeter (1984) e sua tese da destruição criativa, quanto pela teoria marxista, em sua crítica, como no caso de Streeck (2018) e sua tese do “tempo comprado” –, qual seja, a sua adaptabilidade. Esta adaptabilidade diz respeito à sua capacidade de adaptação a diferentes contextos e cenários, mas se vincula, também, à sua enorme capacidade de transformar e ressignificar fenômenos sociais que inicialmente lhe representavam ameaças existenciais.

Um exemplo emblemático dessa capacidade é dado por Arantes (2015), em sua reflexão a respeito da customização: o capitalismo industrial de escala em seu processo de consolidação esteve ancorado, fundamentalmente, na perspectiva da massificação do consumo padronizado – e a famosa frase de Henry Ford de que os clientes poderiam ter um carro da cor que quisessem, desde que fosse preto, é um exemplo cristalino dessa perspectiva –; não à toa, um dos componentes estéticos centrais da contracultura nos Estados Unidos durante os anos 1960 e 1970 era, exatamente, a customização das vestimentas e dos adereços; hoje, por sua vez, a customização foi incorporada como commodity, representando uma qualidade adicional das mercadorias em disputa concorrencial (Arantes, 2015).

Também Marx, na Crítica do Programa de Gotha, sustentou que a cooperativa não poderia ser assumida como uma panaceia desvinculada das lutas sociais concretas – sobretudo se não fosse o resultado direto da auto-organização dos trabalhadores e trabalhadoras: ao comentar uma passagem do Programa do Partido Operário Alemão, em que Ferdinand de Lassalle defende a criação de cooperativas subvencionadas pelo Estado como forma de resolver a “questão social”, Marx afirma que não é possível vislumbrar o surgimento de uma sociedade nova a partir de uma criação do Estado – enquanto forma social capitalista e, assim, instrumento de dominação de classe –, tal como se constrói uma ferrovia (Marx, 2012, p. 41): “No que diz respeito às atuais sociedades cooperativas, elas só têm valor na medida em que são criações dos trabalhadores e independentes, não sendo protegidas nem pelos governos nem pelos burgueses”.

Ao examinar o conceito de alienação no contexto da sociedade de consumo moderna, Dobrohoczki (2013) estuda a capacidade de as empresas cooperativas atuarem como espaços de resistência contra o capitalismo global e como agentes de transformação. São consideradas espaços de resistência devido ao fato de sua motivação principal ser relacionada às necessidades dos membros e não o lucro, proporcionando uma maior proteção do consumidor em uma era impulsionada pelas crises crescentes de legitimidade do capital global. Esta motivação visando as necessidades dos membros traz as cooperativas como mais propensas a desenvolver modelos sustentáveis de produção e consumo.

Considerações finais

A partir de uma breve e sucinta genealogia (política e epistemológica) do conceito, o objetivo central deste boletim convergiu na discussão em torno da polissemia dos conceitos de cooperativa e cooperativismo, não apenas evidenciando seu caráter dinâmico e em disputa, mas, fundamentalmente, como as transformações pelas quais passaram ao longo do tempo traduziram, também, conflitos de classe derivados da agudização das contradições inerentes ao desenvolvimento capitalista.

Se, por um lado, não é possível assumir os conceitos de cooperativa e cooperativismo como absolutos e unânimes em sentido diacrônico, tampouco o é em sentido sincrônico: a transfiguração da cooperativa a partir de sua apropriação pela lógica da reprodução ampliada do capital não resume a experiência cooperativa contemporânea, e um dos mais diversos exemplos existentes disto são – como mencionadas por Arantes (2008) – as cooperativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que combinam a luta pela terra, a produção agroecológica e a garantia da reprodução social da agricultura familiar. As cooperativas contemporâneas também podem servir à construção de um desenvolvimento solidário, em contraposição ao desenvolvimento capitalista tradicional, desde que nucleado por “comunidades de pequenas firmas associadas ou de cooperativas de trabalhadores, federadas em complexos, guiado pelos valores da cooperação e ajuda mútua entre pessoas ou firmas, mesmo quando competem entre si nos mesmos mercados” (Singer, 2008, p. 9).

Para Kautsky (1980), é pouco compreensível o fato de alguém negar a importância das cooperativas. Apesar da afirmação do autor corresponder ao contexto do século passado, ela tem sua atualidade na medida em que se observam cooperativas dos mais diversos segmentos que se mantém na defesa dos valores cooperativistas originários. Porém, em paralelo, também se observam modelos reprodutores da lógica do capital em sua essência. A busca do rigor conceitual – nestes casos – não enseja, apenas, cautela epistemológica, mas, sobretudo, uma luta política e existencial.

Situadas entre o mercado e o Estado, as cooperativas podem se tornar espaços de resistência das comunidades contra os modos dominantes de produção, consumo e coerção (Dobrohoczki, 2013). Para Singer (2002, p. 10), se “toda economia fosse solidária, a sociedade seria muito menos desigual”. Em uma era marcada por mudanças climáticas cada vez mais aceleradas decorrentes do consumo excessivo que alimenta o capitalismo de mercado, esta característica se torna cada vez mais essencial.

Referências

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